sexta-feira, abril 01, 2005

Há uma pessoa que ainda não morreu, mas toda a gente fala dele como se já estivesse morto. Mas se ainda não morreu, porque fingem a sua morte?
E, porém, desgraçado de quem tem fama – não tem o privilégio de viver uma morte privada. Eu quero uma morte privada.
No outro dia tentei falar do tema Morte com o meu pai – ele não quis ouvir. Alguém quererá? Ou só quem está mais próximo dela faz ouvidos moucos? Não tenho fascínio por isto, antes curiosidade. Porque eu quero saber o que me espera. E não acredito grandemente em infernos. As parábolas orientais parecem-me lógicas. O inferno e o céu já cá estão e nós escolhemos ou não vivê-los.
Desgraçado do homem, nem pode morrer em paz, com a privacidade intacta.
A minha avó teme a morte. Tem oitenta e oito anos.
Eu digo (não a ela): a morte é uma libertação. Vamos para um lugar melhor. Há quem me estranhe a conversa porque sou agnóstica. O meu problema é que tenho dificuldade em encontrar e manter fundamentalismos – no sentido de Ideias Fundamentais. Não as tenho. Segundo o meu mapa astral tenho de encontrar os meus valores (espirituais e outros). Sinto dificuldade em acreditar por isso acho quase impossível que os outros não tenham dificuldades nenhumas. Como podem não as ter? (Como se atrevem a não tê-las?!)
Coitado do homem, trabalhou até morrer, mesmo até ao fim, nem reforma teve, nem descanso. Acho isto um martírio e uma parvoíce. Tenho pena dele.
A Morte é um recreio. É um repouso. O verdadeiro trabalho é estar cá, na Terra, vivo.
Gosto de pensar nestas coisas. Tenho o Sol na casa nove, a casa do espírito (se não me engano). Gostava de lá ter o Júpiter. Tinha ido para vigária, lol! Quer dizer, não sei. Ainda tenho mais uns anitos para pensar sobre estes assuntos. Pelo menos meio século, talvez mais. Uma tia do meu pai morreu com noventa e cinco anos, santo Deus. Se eu durar tanto o que farei para não me aborrecer?
O homem já morreu?
Há pessoas que, por vê-las todos os dias, por conhecê-las de vista, são referências na nossa paisagem pessoal. Aquele senhor que costuma estar no café; o outro senhor que tem bengala e o cabelo muito branco e se costuma ver na rua; o outro que anda de mota, apesar da idade; aquela senhora que é casada com o antigo funcionário do nosso liceu. Morrem e de súbito a nossa paisagem íntima muda. É estranho.
Qual é o grande problema com a morte? Temer o quê, o juízo final? Segundo relatos de quem teve experiências de quase-morte, quem nos julgamos somos nós próprios. Nem Deus nos julga (só por isso talvez reavalie o meu agnosticismo). Eu, nisto, vou pela lógica. Fui educada na ciência como a maioria dos ocidentais. Há coisas que me parecem lógicas, coerentes. A Crença, a fé pela fé, sem nada por trás a suportá-la – não me parece racional. Eu tenho de pensar nisto sempre, sempre – fazer reavaliações constantes. Tal como na ciência não consigo ter verdades eternas e imutáveis.
O homem vai morrer. Espero que tenha uma boa viagem, espero que não sofra no falecimento e no tempo que o antecede, espero que esta malta toda a rezar pela sua vida – o liberte. O liberte para a morte.
Talvez quando eu for muito, muito velha tenha medo. Por enquanto não tenho, mas, em verdade, nunca vi a Morte de frente. Nunca tomámos chá nem lhe dei bolinhos. Nunca tivemos conversas sobre a Casa Pia e as novelas da TVI (que eu não assisto) ou as novelas da SIC (que eu não assisto). Podes aparecer por cá, a sério.
Só não tragas o instrumento do ofício.

Sem comentários: