domingo, abril 17, 2005

Desafio da semana: Em suspenso.

Este desafio quer que deixe os seus leitores em suspenso, à espera de mais.
Quer dizer MESMO à espera de mais. Porque você não lhes vai dar o resto.

Até dia 19.

Abaixo a minha participação.

========

Método


O que é que eu penso? Penso que não vale a pena pensar em ti. Estás morto. Eu matei-te, aqui, no meu coração. Amordacei o peito.
Não resultou.
Resolvi matar-te fazendo uso da besta que o meu irmão usa nas competições desportivas. Competições de bestas, imaginas? Sem segundos sentidos. Tu ganharias, a propósito, porque, tal como a besta, és certeiro, directo, mortífero. Não te desvias do rumo nem um centímetro. Atravessas o fogo, se necessário. Matei-te com a besta, no meio da floresta, por entre os pinheiros e os eucaliptos, entre o fogo. No dia seguinte, consumada a tua morte mítica (sim, pois tal como os mitos és, agora, de consistência irreal, não existes, nunca exististes na dimensão humana), o coração, no início de uma cura adivinhada longa, fragilizado, foi-se abaixo quando a tua memória lhe tolheu a cicatrização e se instalou nos tecidos moribundos como um fungo, uma infecção insalubre generalizada.
Sem grande escolha optei por um método novo. O fogo não resulta porque tu és da natureza do fogo, queimas os demais sem beliscares a tua pele, avanças em frente sem parar. Talvez a água te mate. Sim, a pureza. Não. Que ideia. O fogo também é puro. O fogo é puro renascimento, ressurgir, contínua metamorfose. O fogo limpa – mas não se altera. Altera o que está à volta sem se alterar a si próprio. A raiva, a dor, quiçá o ódio cegaram-me para as tuas qualidades. Tu foste a minha prova de fogo, o motivo principal da minha renovação. Foi como se me escamasses por dentro. Mudei a pele, várias peles, do interior, do íntimo enquanto a face que apresentava ao mundo era a mesma. Mas eu já não sou a mesma, já não sou eu própria. Quanto te amei? E se já não te amo (que não amo) porque não consigo esquecer, perdoar-te? Se a dor que me deste me transformou não devia estar agradecida? De facto estou, mas a minha natureza escorpiana não admite perdões. É vingativa. “Hás-de pagar-mas”, sussurra por entre dentes o meu coração agonizante. Cavaste um buraco de chama ardente no meu peito. Não te devo culpar porque não me conhecias, não sabias que acredito na desforra. Se o meu signo fosse Aquário ou Peixes ou até Sagitário terias melhor sorte. Não é esse o caso. Choca-me que as pessoas não ajam na acepção de que qualquer indivíduo com quem possam lidar possa no futuro lixar-lhes a vida, se tiver causa para isso. Eu procedo com todos como se estivessem prestes a derreter-se.
A dor não parte e é a dor constante que me lembra que devo vingar-me. A dor é a fonte da transmutação, podes replicar-me, mas isso não a apaga. Podes contrapor ainda outro argumento: que a tua morte não a aniquilaria. Mas eu alego que sim, com o tempo a aniquilaria. Tu deixarias de existir e o meu coração renasceria. Para outro. Por isso a tua morte, verdadeira, física, biológica, é-me tão essencial como o ar que eu respiro. Tenho uma grande dívida de gratidão para ti, mas tal não impedirá que me vingue.
Enfim, podia fazer outra coisa. Confidenciei os meus pensamentos a um amigo e ele propôs-me outra forma de vingança, uma em que ficarias vivo, mas no mesmo estado em que eu estou.
Entre o seu método e o meu, balanço.
Talvez tos deva revelar a ti, ambos, para que tu próprio decidas o teu destino.

Sem comentários: