quinta-feira, abril 07, 2005

Visita ao médico – relato do dia 5 de Abril’05


Sempre que vou ao médico tenho medo. Já o cheiro me dá medo, um frio vertical no estômago. Medo e vergonha. Quero é que aquilo seja despachado. Só vou mesmo à última. Quando “o que não [procura] remédio, remediado está” já não soluciona o caso.
Bom, fui à SAP acompanhar a minha mãe e, de caminho, aproveitei para me consultar acerca de uma ferida no olho que nem sequer me dói. A minha mãe levou uns comprimidos e um sermão porque devia ter ido ao médico de família (se nós o tivéssemos) e eu uma via azul para as urgências de oftalmologia no São José. Já alguma vez tentaram ir de carro para o Hospital de São José? Pois, eu também não, de modo que me encontro no Metro a caminho do Martim Moniz. A seguir é a penantes. O exercício dá saúde (ironias).
Já tive, anos atrás, a vista ferida. Se não me engano uma gota de azeite saltou-me para o olho quando fazia um hambúrguer. Desta vez foi a acender um fósforo e calhava estar sem óculos. Não tenho grandes tragédias (de saúde) a relatar. Nem sequer parti nada na infância. Fartei-me de malhar de patins, mas nunca parti uma perna, um braço. Entristece não ter essas lembranças de dores felizes. Na outra ocasião andei a imitar um pirata com o olho coberto. Espero que os meus dias de pirataria tenham acabado.
São 20h41. Se chegar ao São José por volta das nove vou com sorte. Não entro às 10h00 em casa.


Chiça, as escadas do Martim Moniz até ao Hospital quase me matavam!
Sigo pelos Serviços de Urgências e vou às Admissões, passando pela Polícia.
- Espera ali na Sala de Espera. Quando ouvir o seu nome entra por ali (Serviço de Urgência) e segue para o Balcão das Mulheres. As melhoras.
- Obrigada.
Na sala de espera cheira a vomitado. Vou jantar às 10h? Se calhar bebo um chá e que se lixe, não posso ir dormir de estômago cheio.
Eu não tenho médico de família. O último foi-se embora e os doentes não foram reencaminhados para outro. A quem é que eu escrevo a chatear os cornos em relação a este assunto? Outra coisa muito gira também: sou dadora de sangue. Apresentei o cartão de dadora na SAP e o PC decretou: não isenta. Não isenta uma porra! Aparentemente isto já aconteceu a muitos. Mas a senhora da recepção não me cobrou nada à mesma (simpática). Porém. Tenho de ir ao Instituto Português do Sangue e actualizar o cartão e depois ir ao Centro de Saúde da minha residência para colocar a informação de que sou dadora no cartão de utente. Isto não era mais fácil carimbar a testa? Mas para quê tanta merdinha, porra? Tanta porcariazinha de burocracia, chiça.
Ainda não me chamaram.
Ainda encho o bloco, minúsculo, antes de ser atendida.
Sabem o que eu gostava? Queixar-me de não ter médico de família e, devido à enorme importância do meu blog (eu ouvi essas risadas cínicas, meus sacanas), ter o problema resolvido em dois dias. Ah isso é que eu gostava. Infelizmente não sou o Abrupto.
Na casa de banho leio na porta: queres conhecer um gajo todo bom liga para (o resto foi riscado). O Hospital até providencia a diversão. Bendito.
Ainda não me chamaram.
Não era suposto ser “via azul? Será que o oftalmologista está cá? Estará a dormir? A ver o Serviço de Urgência, os episódios antigos onde entra o George Clooney (não o acho assim tão bonito, a propósito)?
Já chamaram uma data de pessoas, menos a mim.
- Preciosa Martins F. C.
Olha, bom nome. Ver se o uso. Dona Preciosa, senhora pouco bondosa.
- Laurinda C. Balcão de Mulheres.
Porra, quando é que me chamam? Chego a casa à meia-noite? É chegar e ir para a cama, tenho de me levantar cedo. Depois é um castigo para me arrastar para fora do sono.
A maioria do pessoal à espera é malta nova, 20’s, 30’s, 40’s. Só vejo uma senhora de bengala.
Dona Preciosa, a da bengala ardilosa!
(Carla, no altifalante, soa como Cara.)
Há quadros da instituição e informações ao longo da parede.
21h15. Ainda não me chamaram.
Não – chamaram agora.
Fui, através do Serviço de Urgência. Mandaram-me de volta para a Sala de Espera. Quando chamarem novamente dirijo-me ao balcão de oftalmologia. São 21h20. Chegarei à uma da manhã a casa?
No Balcão das Mulheres, logo de início, havia três ou quatro macas com doentes e mais uma data de pessoas sentadas e em pé, falando com os médicos.
A senhora de bengala vem a passar por mim. Anda com dificuldade, coxeia da perna esquerda. Se chegar a velha (a minha carta astral assegura-me que viverei uma vida longa) não quero depender de ninguém (influência da lua em Sagitário, se não me engano). Nem quero aborrecer ninguém com lamúrias, dói-me isto, dói-me aquilo. Dói-me tude tude tude. O único remédio é o exercício físico regular. As minhas duas avós têm problemas cardíacos, suponho que isso é de esperar. Logo se vê.
São 21h26. Ainda não me chamaram. Chegarei às 02h a casa?
A parede da Sala de Espera foi coberta, a dois terços, com pequenos quadrados azuis. O último terço foi reservado à tinta branca. Há uma faixa de madeira à altura das ancas.
21h28. Ainda não me chamaram.
Ah, quem me dera ser rica, podia ficar doente à vontade.
Duas plantas artificiais aos cantos.
- Ângela Silva QualquerCoisa. Balcão de mulher.
Eu ainda escrevo uma epopeia aqui. Já fumegava pelos ouvidos se não me distraísse a escrever.
Chegarei às 03h da matina a casa? Eu hoje não janto, ‘tá visto.
Os portugueses sabem esperar. Estão habituados às secas. Armam-se daquele olhar vazio, oco, ausente.
- Rosalina S.
Isto é uma catrefa de nomes interessantes para nomear personagens.
- Bom dia, D. Rosalina!
- Bons-dias, D. Preciosa!
- Ora onde é que vai?
- Vou ao talho! E vossemecê?
- Vou ali fazer um recado. Então até logo.
- Até mais logo.
(Sim, parece-me que ainda sai daqui uma epopeia.)
21h35. Hoje não me chamam. Talvez à meia-noite.
- Miduína M. P.
Descobrirão a minha múmia com pó e teias de aranhas, agarrada a um pequeno bloco quadriculado e a uma caneta vermelha de ponta de feltro.
- T. Mancore.
Mancore? Se for este o apelido, é giro. Pelo altifalante há ocasiões em que não se percebem os nomes.
Mas será que era para eu ter ido logo ao tal do balcão de oftalmologia e não vir para a Sala de Espera novamente? Será que me enganei?
A quem é que chateio o juízo para porem um médico de família na minha zona? Desconfio que terei maior sorte em confiar nas probabilidades de ganhar o euromilhões do que confiar nas promessas de políticos. Algumas devem ter sido feitas no caso dos médicos de família, decerto. Nem preciso conhecer as promessas de cor para sabê-lo.
Aqui, na Sala de Espera, sem televisão, informo, ainda completo duas ou três epopeias. Escritas em grego. Tenho tempo de sobra para aprender o idioma.
Ó porra, chamem-me!
Caracinhas.
Uma mulher, de calças e blusão de ganga, dorme com o tronco apoiado na outra cadeira. Eu ainda baptizo os meus netos aqui.
Duas cadeiras adiante da mulher um homem calvo dormita sentado com as mãos entrelaçadas. Mas será que o oftalmologista teve uma crise de vocação e decidiu mudar de carreira? Ou estará a terminar o curso?
Ah, quem me dera ter bago para ir a um particular.
- Joana A. Vá para o otorrino! – ordena a voz feminina no altifalante.
Enfim a mulher que dormia é chamada ao otorrino. Estava cá antes de mim. Calculo que chegou quando ainda era bebé de colo, pois a mãe acompanha-a.
Daqui a pouco gasto o bloco de apontamentos. Ai, doem-me as costas.
21h48. Ainda não me chamaram.
O cavalheiro calvo dorme, a cabeça pende para o peito e tem o pé esquerdo descalço. O oftalmologista descobriu que a mulher lhe é infiel e resolveu salvar a honra, exigindo um duelo de espadas, o que explica a demora. Vou na vigésima terceira folha do bloco, escritas numa face. Com o tempo que gastei para vir e aguardar podia ter ido a Espanha e voltado, vai uma aposta? Podia lá ter ido
21h54. Chamaram-me.

O oftalmologista é espanhol. Deve ter vindo de Espanha.
De urgência.

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Tenho uma infecção na córnea do olho. Os meus dias de pirata voltaram. Se soubesse não tinha trespassado o papagaio e a canoa, eish. Bolas, isto podia ficar mau sem tratamento. Infecção na córnea. Antibióticos, pingos, pomada. Não posso perder a visão. Depois como escreveria? Não – os olhos não.
São 22h21.

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