terça-feira, abril 26, 2005
segunda-feira, abril 25, 2005
Cap. 5 d'A Imortalidade
Não consigo encontrar a casa. Percorri o atalho de fio a pavio várias vezes e nada. Começo seriamente a duvidar da minha saúde mental e num flash repentino vejo a minha tia-avó esquizofrénica que passou a maior parte dos seus dias no Júlio de Matos, passeando nos jardins, falando sozinha, sem conhecer outro mundo que não aquele.
Considero mesmo a remota hipótese de se tratar de um trauma neurológico. Bati com a testa em algum lugar? Caí da cama? Sou incapaz de recordá-lo.
De repente penso no ridículo dos meus pensamentos e ponho cobro àquilo. Já perdi demasiado tempo com este assunto. Decido ir enfim à mercearia fazer as compras em falta desde ontem. A sensação de alívio que me banha o interior das veias espanta-me.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
- Tem solha?
- Não neste momento, não temos. Temos é ali um bacalhauzinho muito bom.
- Hum, pode ser. Eu levo.
Enquanto o pesa e corta vou pondo no balcão os mantimentos de que necessito: natas, azeite, cebolas, alho, batatas, arroz, pescada e hambúrgueres congelados, ovos, bolachas, uvas, laranjas. Não levo mais nada porque não posso com o peso. Imaginar o bacalhau com natas, pronto a sair do forno, faz-me aguar a boca de antecipado prazer.
Pago e saio.
Distraio-me com imagens deliciosas da preparação do prato, considerações acerca dos gostos culinários do meu marido (talvez lhe faça o tiramisú que tanto aprecia) quando os sacos de compras quase escorregam das minhas mãos e fico de boca aberta, estupefacta, a olhar o edifício perdido, ou quiçá invisível, de há pouco.
Subitamente estou de novo à porta da casa mistério, como se engolida por um universo paralelo ou vítima de um passo mal dado que me plantou nas divagações oníricas de outro humano.
Um ligeiro estremecer no estômago, acompanhado por uma não tão ligeira raiva, fazem-me entrar de rompante na casa. A porta estava totalmente aberta.
Avanço, os sacos a baterem-me nas pernas velozes, ignorando os livros, o meu primeiro prazer (o segundo é a comida) e dirijo-me com ganas para o túnel quando reparo no quadro.
À luz do dia as nítidas figuras antigas retêm o meu fôlego com a força de um lenço a esmagar-me a traqueia. Aproximo-me.
A mancha azul vinha do longo vestido de noite que a jovem mulher loira envergava. O seu olhar azul continha traços de uma ingenuidade treinada e uma inquestionável crueza. O rapaz ao seu lado, de pé, devia ter cerca de nove anos, e usava um fato de marinheiro. Na mão direita segurava um comboio de brinquedo. O olhar apático traía a sonolência, prova de ter sido obrigado a posar para o retrato. À época a fotografia era comum. Mas ele provinha de famílias ricas que sempre se retrataram do mesmo modo, adivinho. O choque foi ver na rapariga representada o rosto da jovem prisioneira que eu vim libertar. O mesmo rosto.
Os mesmos traços.
Os mesmos olhos.
A mesma pessoa?! Impossível!
E a mancha no pescoço do rapaz. Já a tinha visto antes.
Procurei por instantes, confusa, na mente a chave do reconhecimento, a decifração do enigma do local ou, se possível, da pessoa, até que num relâmpago repentino a memória dissipou a sombra que a velava e vi claramente o rosto do homem a quem, agora, a mancha pertence.
Corri para a porta ao lado do quadro. Precisei novamente da pequena lanterna do chaveiro. A estátua permanecia na mesma posição e eu estaquei: um pavor subterrâneo subia-me das raízes para o rosto.
Apontei o foco de luz à face marmorizada e desviei as roupas para o lado, pondo totalmente a descoberto o pescoço.
Abafei um frémito perturbado. Depois comecei a respirar em pequenos e rápidos assopros.
A pequena mancha, mal discernível por entre a roupa, revelou ser idêntica à do quadro. Duvidei tratar-se de um sinal partilhado pela família.
Mas já não duvidava do que vivi. Já não duvidava da minha sanidade nem do facto concreto de ter visto a bela face da jovem desconhecida transformar-se numa carranca monstruosa.
Cont.
Não consigo encontrar a casa. Percorri o atalho de fio a pavio várias vezes e nada. Começo seriamente a duvidar da minha saúde mental e num flash repentino vejo a minha tia-avó esquizofrénica que passou a maior parte dos seus dias no Júlio de Matos, passeando nos jardins, falando sozinha, sem conhecer outro mundo que não aquele.
Considero mesmo a remota hipótese de se tratar de um trauma neurológico. Bati com a testa em algum lugar? Caí da cama? Sou incapaz de recordá-lo.
De repente penso no ridículo dos meus pensamentos e ponho cobro àquilo. Já perdi demasiado tempo com este assunto. Decido ir enfim à mercearia fazer as compras em falta desde ontem. A sensação de alívio que me banha o interior das veias espanta-me.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
- Tem solha?
- Não neste momento, não temos. Temos é ali um bacalhauzinho muito bom.
- Hum, pode ser. Eu levo.
Enquanto o pesa e corta vou pondo no balcão os mantimentos de que necessito: natas, azeite, cebolas, alho, batatas, arroz, pescada e hambúrgueres congelados, ovos, bolachas, uvas, laranjas. Não levo mais nada porque não posso com o peso. Imaginar o bacalhau com natas, pronto a sair do forno, faz-me aguar a boca de antecipado prazer.
Pago e saio.
Distraio-me com imagens deliciosas da preparação do prato, considerações acerca dos gostos culinários do meu marido (talvez lhe faça o tiramisú que tanto aprecia) quando os sacos de compras quase escorregam das minhas mãos e fico de boca aberta, estupefacta, a olhar o edifício perdido, ou quiçá invisível, de há pouco.
Subitamente estou de novo à porta da casa mistério, como se engolida por um universo paralelo ou vítima de um passo mal dado que me plantou nas divagações oníricas de outro humano.
Um ligeiro estremecer no estômago, acompanhado por uma não tão ligeira raiva, fazem-me entrar de rompante na casa. A porta estava totalmente aberta.
Avanço, os sacos a baterem-me nas pernas velozes, ignorando os livros, o meu primeiro prazer (o segundo é a comida) e dirijo-me com ganas para o túnel quando reparo no quadro.
À luz do dia as nítidas figuras antigas retêm o meu fôlego com a força de um lenço a esmagar-me a traqueia. Aproximo-me.
A mancha azul vinha do longo vestido de noite que a jovem mulher loira envergava. O seu olhar azul continha traços de uma ingenuidade treinada e uma inquestionável crueza. O rapaz ao seu lado, de pé, devia ter cerca de nove anos, e usava um fato de marinheiro. Na mão direita segurava um comboio de brinquedo. O olhar apático traía a sonolência, prova de ter sido obrigado a posar para o retrato. À época a fotografia era comum. Mas ele provinha de famílias ricas que sempre se retrataram do mesmo modo, adivinho. O choque foi ver na rapariga representada o rosto da jovem prisioneira que eu vim libertar. O mesmo rosto.
Os mesmos traços.
Os mesmos olhos.
A mesma pessoa?! Impossível!
E a mancha no pescoço do rapaz. Já a tinha visto antes.
Procurei por instantes, confusa, na mente a chave do reconhecimento, a decifração do enigma do local ou, se possível, da pessoa, até que num relâmpago repentino a memória dissipou a sombra que a velava e vi claramente o rosto do homem a quem, agora, a mancha pertence.
Corri para a porta ao lado do quadro. Precisei novamente da pequena lanterna do chaveiro. A estátua permanecia na mesma posição e eu estaquei: um pavor subterrâneo subia-me das raízes para o rosto.
Apontei o foco de luz à face marmorizada e desviei as roupas para o lado, pondo totalmente a descoberto o pescoço.
Abafei um frémito perturbado. Depois comecei a respirar em pequenos e rápidos assopros.
A pequena mancha, mal discernível por entre a roupa, revelou ser idêntica à do quadro. Duvidei tratar-se de um sinal partilhado pela família.
Mas já não duvidava do que vivi. Já não duvidava da minha sanidade nem do facto concreto de ter visto a bela face da jovem desconhecida transformar-se numa carranca monstruosa.
Cont.
sexta-feira, abril 22, 2005
Caríssimos senhores visitantes provenientes do México, dos EUA, da Argentina:
Porquê tamanho interesse neste arquivo em particular?
É por causa do video do ovni?
Expliquem-me, eu gostava de saber.
Porquê tamanho interesse neste arquivo em particular?
É por causa do video do ovni?
Expliquem-me, eu gostava de saber.
quarta-feira, abril 20, 2005
O centauro ocupava toda a entrada da carruagem. E o cheiro, meu Deus. Aquele maldito cheiro a cavalo! Semeava bostas por onde quer que passasse, o Metro fora baptizado desde a entrada até à carruagem onde eu seguia, na direcção do Marquês de Pombal. Malditos centauros. Não há um dia que não chegue a casa sem porcaria na sola dos sapatos. E de autocarro também não posso andar, nunca se sabe quem se senta ao nosso lado, uma bruxa, um feiticeiro, um qualquer ser vingativo que nos diminua o tamanho do crânio à mínima falta. Ao menos no Metropolitano só sujo os sapatos e continuo com a cabeça intacta. É complicado viver nesta cidade, ando continuamente a fugir de ogres e à noite tenho de adornar o pescoço com um colar de alhos fedorentos para manter os sacanas dos vampiros à distância. Saídas à noite nem pensar. Meu rico pescocinho. Ainda por cima sou AB- e parece que apreciam a “colheita” (o meu tipo de sangue combinado com o ano de nascença). Isto parece que há anos melhores e piores.
Mas a grande chatice são os porcos voadores. Porquê - nem vale a pena explicar. Basta dizer que as minhas contas na lavandaria têm subido exponencialmente. Ando a considerar emigrar. Não sei é para onde ir. Por todo o lado existem porcos que voam e centauros.
Talvez Marte.
É um bocado deserto, mas isso até pode ser uma vantagem.
Mas a grande chatice são os porcos voadores. Porquê - nem vale a pena explicar. Basta dizer que as minhas contas na lavandaria têm subido exponencialmente. Ando a considerar emigrar. Não sei é para onde ir. Por todo o lado existem porcos que voam e centauros.
Talvez Marte.
É um bocado deserto, mas isso até pode ser uma vantagem.
19 de Abril´05
Aquilo que eu acho que realmente aconteceu dentro do Conclave:
- Os cardeais ocuparam-se a jogar dados e cartas e a serem subornados pelo Pinto da Cuosta com prostitutas brasileiras. (Mas isto sou eu que sou um bocado cínica nestas coisas.)
Como são todos gajos aposto que houve concurso de arrotos e de quem mijava mais longe.
E aposto que, mal fechada a porta, tiraram os sapatos, desapertaram os fatos e assistiram a uma partida de futebol na televisão que, adivinho!, alguém levou para o interior da Capela Sistina, dissimulada. (Mas isto sou eu, enfim, sou fértil em ideias heréticas.)
E tiveram pena que não houvessem cardealas para lhes limpar a correnteza de cascas de amendoins e pevides e pôr as latas de cerveja no lixo.
[Pela rádio informam-me sobre o fumo branco e sobre os sinos e oiço as palmas do povo. Tudo o que consigo pensar é: peloamordedeus, que não seja o Ratzinger.]
Desconfio que um ou outro cardeal tenha levado os patins a fim de demonstrar a geriátrica flexibilidade, prova da sua longevidade e rija saúde.
Tenho quase a certeza que um, para demonstrar a ligação à juventude materialista que urge reconverter, levou escondida nas vestes a Playstation que saiu há pouco tempo.
Muitos, tendo em conta a idade, devem ter dormido e ressonado durante as votações. Quem me garante que um ou outro cardeal não terá votado mais do que a sua vez? O Ratzinger, caso a ocasião se apresentasse, teria votado nele próprio para aí umas cinquenta vezes.
Ó Habemus Papam, Habemus Papam. Papinha. Cerelac.
Mas porque raio é que eu não posso votar no pontífice? Serei menos do que um cardeal? Eu Quero Votar no Pontífice! Sou católica, afinal. Não praticante. Agnóstica. Pormenores que não vêm ao caso.
Um dia. Ena. Turbo-eleição. Com chazinho e bolachinhas pelo meio, pergunta-se o meu eu céptico, sempre suspeitando.
A eleição do Papa não devia ser um acontecimento à escala mundial? Votantes: um bilhão. Ca fixe.
Nesse caso ganharia, decerto, um Papa sul-americano ou africano. Um Papa negro. Isso a mim não me faz espécie. Fará a alguém? Papa Negro... ou melhor ainda: uma Papisa Negra!
Ah, isso, isso é que eu gostava de ver!
Um dia as mulheres chegam lá.
[Peloamordedeus, que não seja o Ratzinger.]
Na infância eu pensava que Deus, Ele Mesmo, o Altíssimo Gajo, falava directamente com os cardeais e indicava o escolhido por Si. Porque é que eu nunca me perguntei: porque razão há-de ser uma coisa tão secreta Deus falar com os homens? Porque o hão-de esconder? Mas era criança e as crianças não têm consigo questões complexas.
Deus não é para ser escondido por entre quatro paredes. Na verdade isso não me importa porque a dúvida permeia-me o espírito como uma porta que, depois de aberta, nunca se fechou.
[Peloamordedeus, que não seja o Ratzinger.]
Tenho o espírito demasiado aberto pela dúvida. Às vezes sinto saudades da certeza. Certezas não fazem mal a ninguém - desde que espaçadas no tempo.
[Pois. Lá teve de ganhar o gajo da Inquisição. Belos tempos se avizinham, olaré.]
Aquilo que eu acho que realmente aconteceu dentro do Conclave:
- Os cardeais ocuparam-se a jogar dados e cartas e a serem subornados pelo Pinto da Cuosta com prostitutas brasileiras. (Mas isto sou eu que sou um bocado cínica nestas coisas.)
Como são todos gajos aposto que houve concurso de arrotos e de quem mijava mais longe.
E aposto que, mal fechada a porta, tiraram os sapatos, desapertaram os fatos e assistiram a uma partida de futebol na televisão que, adivinho!, alguém levou para o interior da Capela Sistina, dissimulada. (Mas isto sou eu, enfim, sou fértil em ideias heréticas.)
E tiveram pena que não houvessem cardealas para lhes limpar a correnteza de cascas de amendoins e pevides e pôr as latas de cerveja no lixo.
[Pela rádio informam-me sobre o fumo branco e sobre os sinos e oiço as palmas do povo. Tudo o que consigo pensar é: peloamordedeus, que não seja o Ratzinger.]
Desconfio que um ou outro cardeal tenha levado os patins a fim de demonstrar a geriátrica flexibilidade, prova da sua longevidade e rija saúde.
Tenho quase a certeza que um, para demonstrar a ligação à juventude materialista que urge reconverter, levou escondida nas vestes a Playstation que saiu há pouco tempo.
Muitos, tendo em conta a idade, devem ter dormido e ressonado durante as votações. Quem me garante que um ou outro cardeal não terá votado mais do que a sua vez? O Ratzinger, caso a ocasião se apresentasse, teria votado nele próprio para aí umas cinquenta vezes.
Ó Habemus Papam, Habemus Papam. Papinha. Cerelac.
Mas porque raio é que eu não posso votar no pontífice? Serei menos do que um cardeal? Eu Quero Votar no Pontífice! Sou católica, afinal. Não praticante. Agnóstica. Pormenores que não vêm ao caso.
Um dia. Ena. Turbo-eleição. Com chazinho e bolachinhas pelo meio, pergunta-se o meu eu céptico, sempre suspeitando.
A eleição do Papa não devia ser um acontecimento à escala mundial? Votantes: um bilhão. Ca fixe.
Nesse caso ganharia, decerto, um Papa sul-americano ou africano. Um Papa negro. Isso a mim não me faz espécie. Fará a alguém? Papa Negro... ou melhor ainda: uma Papisa Negra!
Ah, isso, isso é que eu gostava de ver!
Um dia as mulheres chegam lá.
[Peloamordedeus, que não seja o Ratzinger.]
Na infância eu pensava que Deus, Ele Mesmo, o Altíssimo Gajo, falava directamente com os cardeais e indicava o escolhido por Si. Porque é que eu nunca me perguntei: porque razão há-de ser uma coisa tão secreta Deus falar com os homens? Porque o hão-de esconder? Mas era criança e as crianças não têm consigo questões complexas.
Deus não é para ser escondido por entre quatro paredes. Na verdade isso não me importa porque a dúvida permeia-me o espírito como uma porta que, depois de aberta, nunca se fechou.
[Peloamordedeus, que não seja o Ratzinger.]
Tenho o espírito demasiado aberto pela dúvida. Às vezes sinto saudades da certeza. Certezas não fazem mal a ninguém - desde que espaçadas no tempo.
[Pois. Lá teve de ganhar o gajo da Inquisição. Belos tempos se avizinham, olaré.]
terça-feira, abril 19, 2005
domingo, abril 17, 2005
Desafio da semana: Em suspenso.
Este desafio quer que deixe os seus leitores em suspenso, à espera de mais.
Quer dizer MESMO à espera de mais. Porque você não lhes vai dar o resto.
Até dia 19.
Abaixo a minha participação.
========
Método
O que é que eu penso? Penso que não vale a pena pensar em ti. Estás morto. Eu matei-te, aqui, no meu coração. Amordacei o peito.
Não resultou.
Resolvi matar-te fazendo uso da besta que o meu irmão usa nas competições desportivas. Competições de bestas, imaginas? Sem segundos sentidos. Tu ganharias, a propósito, porque, tal como a besta, és certeiro, directo, mortífero. Não te desvias do rumo nem um centímetro. Atravessas o fogo, se necessário. Matei-te com a besta, no meio da floresta, por entre os pinheiros e os eucaliptos, entre o fogo. No dia seguinte, consumada a tua morte mítica (sim, pois tal como os mitos és, agora, de consistência irreal, não existes, nunca exististes na dimensão humana), o coração, no início de uma cura adivinhada longa, fragilizado, foi-se abaixo quando a tua memória lhe tolheu a cicatrização e se instalou nos tecidos moribundos como um fungo, uma infecção insalubre generalizada.
Sem grande escolha optei por um método novo. O fogo não resulta porque tu és da natureza do fogo, queimas os demais sem beliscares a tua pele, avanças em frente sem parar. Talvez a água te mate. Sim, a pureza. Não. Que ideia. O fogo também é puro. O fogo é puro renascimento, ressurgir, contínua metamorfose. O fogo limpa – mas não se altera. Altera o que está à volta sem se alterar a si próprio. A raiva, a dor, quiçá o ódio cegaram-me para as tuas qualidades. Tu foste a minha prova de fogo, o motivo principal da minha renovação. Foi como se me escamasses por dentro. Mudei a pele, várias peles, do interior, do íntimo enquanto a face que apresentava ao mundo era a mesma. Mas eu já não sou a mesma, já não sou eu própria. Quanto te amei? E se já não te amo (que não amo) porque não consigo esquecer, perdoar-te? Se a dor que me deste me transformou não devia estar agradecida? De facto estou, mas a minha natureza escorpiana não admite perdões. É vingativa. “Hás-de pagar-mas”, sussurra por entre dentes o meu coração agonizante. Cavaste um buraco de chama ardente no meu peito. Não te devo culpar porque não me conhecias, não sabias que acredito na desforra. Se o meu signo fosse Aquário ou Peixes ou até Sagitário terias melhor sorte. Não é esse o caso. Choca-me que as pessoas não ajam na acepção de que qualquer indivíduo com quem possam lidar possa no futuro lixar-lhes a vida, se tiver causa para isso. Eu procedo com todos como se estivessem prestes a derreter-se.
A dor não parte e é a dor constante que me lembra que devo vingar-me. A dor é a fonte da transmutação, podes replicar-me, mas isso não a apaga. Podes contrapor ainda outro argumento: que a tua morte não a aniquilaria. Mas eu alego que sim, com o tempo a aniquilaria. Tu deixarias de existir e o meu coração renasceria. Para outro. Por isso a tua morte, verdadeira, física, biológica, é-me tão essencial como o ar que eu respiro. Tenho uma grande dívida de gratidão para ti, mas tal não impedirá que me vingue.
Enfim, podia fazer outra coisa. Confidenciei os meus pensamentos a um amigo e ele propôs-me outra forma de vingança, uma em que ficarias vivo, mas no mesmo estado em que eu estou.
Entre o seu método e o meu, balanço.
Talvez tos deva revelar a ti, ambos, para que tu próprio decidas o teu destino.
Este desafio quer que deixe os seus leitores em suspenso, à espera de mais.
Quer dizer MESMO à espera de mais. Porque você não lhes vai dar o resto.
Até dia 19.
Abaixo a minha participação.
========
Método
O que é que eu penso? Penso que não vale a pena pensar em ti. Estás morto. Eu matei-te, aqui, no meu coração. Amordacei o peito.
Não resultou.
Resolvi matar-te fazendo uso da besta que o meu irmão usa nas competições desportivas. Competições de bestas, imaginas? Sem segundos sentidos. Tu ganharias, a propósito, porque, tal como a besta, és certeiro, directo, mortífero. Não te desvias do rumo nem um centímetro. Atravessas o fogo, se necessário. Matei-te com a besta, no meio da floresta, por entre os pinheiros e os eucaliptos, entre o fogo. No dia seguinte, consumada a tua morte mítica (sim, pois tal como os mitos és, agora, de consistência irreal, não existes, nunca exististes na dimensão humana), o coração, no início de uma cura adivinhada longa, fragilizado, foi-se abaixo quando a tua memória lhe tolheu a cicatrização e se instalou nos tecidos moribundos como um fungo, uma infecção insalubre generalizada.
Sem grande escolha optei por um método novo. O fogo não resulta porque tu és da natureza do fogo, queimas os demais sem beliscares a tua pele, avanças em frente sem parar. Talvez a água te mate. Sim, a pureza. Não. Que ideia. O fogo também é puro. O fogo é puro renascimento, ressurgir, contínua metamorfose. O fogo limpa – mas não se altera. Altera o que está à volta sem se alterar a si próprio. A raiva, a dor, quiçá o ódio cegaram-me para as tuas qualidades. Tu foste a minha prova de fogo, o motivo principal da minha renovação. Foi como se me escamasses por dentro. Mudei a pele, várias peles, do interior, do íntimo enquanto a face que apresentava ao mundo era a mesma. Mas eu já não sou a mesma, já não sou eu própria. Quanto te amei? E se já não te amo (que não amo) porque não consigo esquecer, perdoar-te? Se a dor que me deste me transformou não devia estar agradecida? De facto estou, mas a minha natureza escorpiana não admite perdões. É vingativa. “Hás-de pagar-mas”, sussurra por entre dentes o meu coração agonizante. Cavaste um buraco de chama ardente no meu peito. Não te devo culpar porque não me conhecias, não sabias que acredito na desforra. Se o meu signo fosse Aquário ou Peixes ou até Sagitário terias melhor sorte. Não é esse o caso. Choca-me que as pessoas não ajam na acepção de que qualquer indivíduo com quem possam lidar possa no futuro lixar-lhes a vida, se tiver causa para isso. Eu procedo com todos como se estivessem prestes a derreter-se.
A dor não parte e é a dor constante que me lembra que devo vingar-me. A dor é a fonte da transmutação, podes replicar-me, mas isso não a apaga. Podes contrapor ainda outro argumento: que a tua morte não a aniquilaria. Mas eu alego que sim, com o tempo a aniquilaria. Tu deixarias de existir e o meu coração renasceria. Para outro. Por isso a tua morte, verdadeira, física, biológica, é-me tão essencial como o ar que eu respiro. Tenho uma grande dívida de gratidão para ti, mas tal não impedirá que me vingue.
Enfim, podia fazer outra coisa. Confidenciei os meus pensamentos a um amigo e ele propôs-me outra forma de vingança, uma em que ficarias vivo, mas no mesmo estado em que eu estou.
Entre o seu método e o meu, balanço.
Talvez tos deva revelar a ti, ambos, para que tu próprio decidas o teu destino.
sexta-feira, abril 15, 2005
sábado, abril 09, 2005
Desafio da semana: Currículos rejeitados.
E se se candidatasse a um emprego com o pior currículo do mundo. É isso que queremos ver, o pior e o mais divertido currículo do mundo.
O prazo termina hoje, à meia-noite. Ainda têm tempo.
Eis a minha participação:
O Senhor Bentley Candidata-se
Caríssimos Gajos dos Recursos Humanos da Pizza Hut;
‘Tão bons, pazinhos? Então esses ossos, essa espinha! Vejam lá a escoliose, com a saúde não se brinca, vá para fora cá dentro, comigo o puto vai atrás, o algodão não engana, aqui movimento das forças armadas, fia-te na virgem e não corras.
Serve a presente a intenção de me candidatar no vosso execrável estabelecimento ao execrável cargo de Entregador de Pizzas. Antes de sacar das pinças e cuidadosamente lançar fogo à carta, caro seleccionador, deixe-me dizer-lhe que empregar-me tem as suas vantagens. Eu não preciso de mota, nem de um par de patins (apesar do que minha devota manicura Vanusa – mulata dos verdes olhos - possa dizer). Sou o feliz proprietário de um guarda-chuva voador. Correcto: um guarda-chuva volante. Com ele faço as minhas deslocações e até poupo na senha do passe. Na mão livre empilho as pizzas e, se se der o caso de alguma cair – possibilidade a não excluir pois sou um cavalheiro idoso e por vezes acometido de tremores – decerto não cairão todas. Duas ou três pizzas perdidas ficarão certamente mais em conta que um depósito cheio de gasolina, sobretudo nestes conturbados tempos.
A seguir enumero os pontos altos do meu vasto currículo.
- Trabalhei três dias no Mcdonald’s da Baixa onde fui o feliz responsável pelo foco da epidemia Ébola que se espalhou misericordiosamente num raio de dez quilómetros. A notícia foi abafada pelo Ministério do Turismo.
- Introduzi com sucesso duas catástrofes simultâneas no Banco de Portugal onde estive a serviço por dois dias como empregado de limpeza: fogo e inundação. E apenas devido à inundação os explosivos não detonaram no interior do cofre.
- Fui gerente de uma loja de chapéus-de-chuva, mas malevolamente despediram-me por os ter liberto. Os chapéus-de-chuva querem-se livres como os passarinhos. Piu-piu.
- Ensinei matemática num orfanato estatal durante uma semana. Os cabrões demitiram-me por, nas aulas, ensinar os putos a fazer bolinhas de sabão e a injuriar, tal qual camionistas, os profissionais da política.
- Fui empregado de balcão o tempo estimado de duas horas. No café colocava, como “cheirinho”, pitadas de expectoração verde e espessa, que boiava à superfície, linda, como a nata.
- Tive ainda tempo para ser funcionário público durante setenta e dois anos, desde a tenra e inocente idade dos oito anos. Nunca tive problemas. Nunca lá pus os pés. Recebo a reforma por inteiro e tive bonificações por acréscimo do tempo cumprido.
Sei que reúno as condições para ser um trabalhador exemplar na Pizza Hut. As referências dos meus antigos empregadores seguem no anexo.
Os melhores cumprimentos do vosso criado, etc., etc.
V. Bentley
E se se candidatasse a um emprego com o pior currículo do mundo. É isso que queremos ver, o pior e o mais divertido currículo do mundo.
O prazo termina hoje, à meia-noite. Ainda têm tempo.
Eis a minha participação:
O Senhor Bentley Candidata-se
Caríssimos Gajos dos Recursos Humanos da Pizza Hut;
‘Tão bons, pazinhos? Então esses ossos, essa espinha! Vejam lá a escoliose, com a saúde não se brinca, vá para fora cá dentro, comigo o puto vai atrás, o algodão não engana, aqui movimento das forças armadas, fia-te na virgem e não corras.
Serve a presente a intenção de me candidatar no vosso execrável estabelecimento ao execrável cargo de Entregador de Pizzas. Antes de sacar das pinças e cuidadosamente lançar fogo à carta, caro seleccionador, deixe-me dizer-lhe que empregar-me tem as suas vantagens. Eu não preciso de mota, nem de um par de patins (apesar do que minha devota manicura Vanusa – mulata dos verdes olhos - possa dizer). Sou o feliz proprietário de um guarda-chuva voador. Correcto: um guarda-chuva volante. Com ele faço as minhas deslocações e até poupo na senha do passe. Na mão livre empilho as pizzas e, se se der o caso de alguma cair – possibilidade a não excluir pois sou um cavalheiro idoso e por vezes acometido de tremores – decerto não cairão todas. Duas ou três pizzas perdidas ficarão certamente mais em conta que um depósito cheio de gasolina, sobretudo nestes conturbados tempos.
A seguir enumero os pontos altos do meu vasto currículo.
- Trabalhei três dias no Mcdonald’s da Baixa onde fui o feliz responsável pelo foco da epidemia Ébola que se espalhou misericordiosamente num raio de dez quilómetros. A notícia foi abafada pelo Ministério do Turismo.
- Introduzi com sucesso duas catástrofes simultâneas no Banco de Portugal onde estive a serviço por dois dias como empregado de limpeza: fogo e inundação. E apenas devido à inundação os explosivos não detonaram no interior do cofre.
- Fui gerente de uma loja de chapéus-de-chuva, mas malevolamente despediram-me por os ter liberto. Os chapéus-de-chuva querem-se livres como os passarinhos. Piu-piu.
- Ensinei matemática num orfanato estatal durante uma semana. Os cabrões demitiram-me por, nas aulas, ensinar os putos a fazer bolinhas de sabão e a injuriar, tal qual camionistas, os profissionais da política.
- Fui empregado de balcão o tempo estimado de duas horas. No café colocava, como “cheirinho”, pitadas de expectoração verde e espessa, que boiava à superfície, linda, como a nata.
- Tive ainda tempo para ser funcionário público durante setenta e dois anos, desde a tenra e inocente idade dos oito anos. Nunca tive problemas. Nunca lá pus os pés. Recebo a reforma por inteiro e tive bonificações por acréscimo do tempo cumprido.
Sei que reúno as condições para ser um trabalhador exemplar na Pizza Hut. As referências dos meus antigos empregadores seguem no anexo.
Os melhores cumprimentos do vosso criado, etc., etc.
V. Bentley
quinta-feira, abril 07, 2005
Visita ao médico – relato do dia 5 de Abril’05
Sempre que vou ao médico tenho medo. Já o cheiro me dá medo, um frio vertical no estômago. Medo e vergonha. Quero é que aquilo seja despachado. Só vou mesmo à última. Quando “o que não [procura] remédio, remediado está” já não soluciona o caso.
Bom, fui à SAP acompanhar a minha mãe e, de caminho, aproveitei para me consultar acerca de uma ferida no olho que nem sequer me dói. A minha mãe levou uns comprimidos e um sermão porque devia ter ido ao médico de família (se nós o tivéssemos) e eu uma via azul para as urgências de oftalmologia no São José. Já alguma vez tentaram ir de carro para o Hospital de São José? Pois, eu também não, de modo que me encontro no Metro a caminho do Martim Moniz. A seguir é a penantes. O exercício dá saúde (ironias).
Já tive, anos atrás, a vista ferida. Se não me engano uma gota de azeite saltou-me para o olho quando fazia um hambúrguer. Desta vez foi a acender um fósforo e calhava estar sem óculos. Não tenho grandes tragédias (de saúde) a relatar. Nem sequer parti nada na infância. Fartei-me de malhar de patins, mas nunca parti uma perna, um braço. Entristece não ter essas lembranças de dores felizes. Na outra ocasião andei a imitar um pirata com o olho coberto. Espero que os meus dias de pirataria tenham acabado.
São 20h41. Se chegar ao São José por volta das nove vou com sorte. Não entro às 10h00 em casa.
Chiça, as escadas do Martim Moniz até ao Hospital quase me matavam!
Sigo pelos Serviços de Urgências e vou às Admissões, passando pela Polícia.
- Espera ali na Sala de Espera. Quando ouvir o seu nome entra por ali (Serviço de Urgência) e segue para o Balcão das Mulheres. As melhoras.
- Obrigada.
Na sala de espera cheira a vomitado. Vou jantar às 10h? Se calhar bebo um chá e que se lixe, não posso ir dormir de estômago cheio.
Eu não tenho médico de família. O último foi-se embora e os doentes não foram reencaminhados para outro. A quem é que eu escrevo a chatear os cornos em relação a este assunto? Outra coisa muito gira também: sou dadora de sangue. Apresentei o cartão de dadora na SAP e o PC decretou: não isenta. Não isenta uma porra! Aparentemente isto já aconteceu a muitos. Mas a senhora da recepção não me cobrou nada à mesma (simpática). Porém. Tenho de ir ao Instituto Português do Sangue e actualizar o cartão e depois ir ao Centro de Saúde da minha residência para colocar a informação de que sou dadora no cartão de utente. Isto não era mais fácil carimbar a testa? Mas para quê tanta merdinha, porra? Tanta porcariazinha de burocracia, chiça.
Ainda não me chamaram.
Ainda encho o bloco, minúsculo, antes de ser atendida.
Sabem o que eu gostava? Queixar-me de não ter médico de família e, devido à enorme importância do meu blog (eu ouvi essas risadas cínicas, meus sacanas), ter o problema resolvido em dois dias. Ah isso é que eu gostava. Infelizmente não sou o Abrupto.
Na casa de banho leio na porta: queres conhecer um gajo todo bom liga para (o resto foi riscado). O Hospital até providencia a diversão. Bendito.
Ainda não me chamaram.
Não era suposto ser “via azul? Será que o oftalmologista está cá? Estará a dormir? A ver o Serviço de Urgência, os episódios antigos onde entra o George Clooney (não o acho assim tão bonito, a propósito)?
Já chamaram uma data de pessoas, menos a mim.
- Preciosa Martins F. C.
Olha, bom nome. Ver se o uso. Dona Preciosa, senhora pouco bondosa.
- Laurinda C. Balcão de Mulheres.
Porra, quando é que me chamam? Chego a casa à meia-noite? É chegar e ir para a cama, tenho de me levantar cedo. Depois é um castigo para me arrastar para fora do sono.
A maioria do pessoal à espera é malta nova, 20’s, 30’s, 40’s. Só vejo uma senhora de bengala.
Dona Preciosa, a da bengala ardilosa!
(Carla, no altifalante, soa como Cara.)
Há quadros da instituição e informações ao longo da parede.
21h15. Ainda não me chamaram.
Não – chamaram agora.
Fui, através do Serviço de Urgência. Mandaram-me de volta para a Sala de Espera. Quando chamarem novamente dirijo-me ao balcão de oftalmologia. São 21h20. Chegarei à uma da manhã a casa?
No Balcão das Mulheres, logo de início, havia três ou quatro macas com doentes e mais uma data de pessoas sentadas e em pé, falando com os médicos.
A senhora de bengala vem a passar por mim. Anda com dificuldade, coxeia da perna esquerda. Se chegar a velha (a minha carta astral assegura-me que viverei uma vida longa) não quero depender de ninguém (influência da lua em Sagitário, se não me engano). Nem quero aborrecer ninguém com lamúrias, dói-me isto, dói-me aquilo. Dói-me tude tude tude. O único remédio é o exercício físico regular. As minhas duas avós têm problemas cardíacos, suponho que isso é de esperar. Logo se vê.
São 21h26. Ainda não me chamaram. Chegarei às 02h a casa?
A parede da Sala de Espera foi coberta, a dois terços, com pequenos quadrados azuis. O último terço foi reservado à tinta branca. Há uma faixa de madeira à altura das ancas.
21h28. Ainda não me chamaram.
Ah, quem me dera ser rica, podia ficar doente à vontade.
Duas plantas artificiais aos cantos.
- Ângela Silva QualquerCoisa. Balcão de mulher.
Eu ainda escrevo uma epopeia aqui. Já fumegava pelos ouvidos se não me distraísse a escrever.
Chegarei às 03h da matina a casa? Eu hoje não janto, ‘tá visto.
Os portugueses sabem esperar. Estão habituados às secas. Armam-se daquele olhar vazio, oco, ausente.
- Rosalina S.
Isto é uma catrefa de nomes interessantes para nomear personagens.
- Bom dia, D. Rosalina!
- Bons-dias, D. Preciosa!
- Ora onde é que vai?
- Vou ao talho! E vossemecê?
- Vou ali fazer um recado. Então até logo.
- Até mais logo.
(Sim, parece-me que ainda sai daqui uma epopeia.)
21h35. Hoje não me chamam. Talvez à meia-noite.
- Miduína M. P.
Descobrirão a minha múmia com pó e teias de aranhas, agarrada a um pequeno bloco quadriculado e a uma caneta vermelha de ponta de feltro.
- T. Mancore.
Mancore? Se for este o apelido, é giro. Pelo altifalante há ocasiões em que não se percebem os nomes.
Mas será que era para eu ter ido logo ao tal do balcão de oftalmologia e não vir para a Sala de Espera novamente? Será que me enganei?
A quem é que chateio o juízo para porem um médico de família na minha zona? Desconfio que terei maior sorte em confiar nas probabilidades de ganhar o euromilhões do que confiar nas promessas de políticos. Algumas devem ter sido feitas no caso dos médicos de família, decerto. Nem preciso conhecer as promessas de cor para sabê-lo.
Aqui, na Sala de Espera, sem televisão, informo, ainda completo duas ou três epopeias. Escritas em grego. Tenho tempo de sobra para aprender o idioma.
Ó porra, chamem-me!
Caracinhas.
Uma mulher, de calças e blusão de ganga, dorme com o tronco apoiado na outra cadeira. Eu ainda baptizo os meus netos aqui.
Duas cadeiras adiante da mulher um homem calvo dormita sentado com as mãos entrelaçadas. Mas será que o oftalmologista teve uma crise de vocação e decidiu mudar de carreira? Ou estará a terminar o curso?
Ah, quem me dera ter bago para ir a um particular.
- Joana A. Vá para o otorrino! – ordena a voz feminina no altifalante.
Enfim a mulher que dormia é chamada ao otorrino. Estava cá antes de mim. Calculo que chegou quando ainda era bebé de colo, pois a mãe acompanha-a.
Daqui a pouco gasto o bloco de apontamentos. Ai, doem-me as costas.
21h48. Ainda não me chamaram.
O cavalheiro calvo dorme, a cabeça pende para o peito e tem o pé esquerdo descalço. O oftalmologista descobriu que a mulher lhe é infiel e resolveu salvar a honra, exigindo um duelo de espadas, o que explica a demora. Vou na vigésima terceira folha do bloco, escritas numa face. Com o tempo que gastei para vir e aguardar podia ter ido a Espanha e voltado, vai uma aposta? Podia lá ter ido
21h54. Chamaram-me.
O oftalmologista é espanhol. Deve ter vindo de Espanha.
De urgência.
== == == ==
Tenho uma infecção na córnea do olho. Os meus dias de pirata voltaram. Se soubesse não tinha trespassado o papagaio e a canoa, eish. Bolas, isto podia ficar mau sem tratamento. Infecção na córnea. Antibióticos, pingos, pomada. Não posso perder a visão. Depois como escreveria? Não – os olhos não.
São 22h21.
Sempre que vou ao médico tenho medo. Já o cheiro me dá medo, um frio vertical no estômago. Medo e vergonha. Quero é que aquilo seja despachado. Só vou mesmo à última. Quando “o que não [procura] remédio, remediado está” já não soluciona o caso.
Bom, fui à SAP acompanhar a minha mãe e, de caminho, aproveitei para me consultar acerca de uma ferida no olho que nem sequer me dói. A minha mãe levou uns comprimidos e um sermão porque devia ter ido ao médico de família (se nós o tivéssemos) e eu uma via azul para as urgências de oftalmologia no São José. Já alguma vez tentaram ir de carro para o Hospital de São José? Pois, eu também não, de modo que me encontro no Metro a caminho do Martim Moniz. A seguir é a penantes. O exercício dá saúde (ironias).
Já tive, anos atrás, a vista ferida. Se não me engano uma gota de azeite saltou-me para o olho quando fazia um hambúrguer. Desta vez foi a acender um fósforo e calhava estar sem óculos. Não tenho grandes tragédias (de saúde) a relatar. Nem sequer parti nada na infância. Fartei-me de malhar de patins, mas nunca parti uma perna, um braço. Entristece não ter essas lembranças de dores felizes. Na outra ocasião andei a imitar um pirata com o olho coberto. Espero que os meus dias de pirataria tenham acabado.
São 20h41. Se chegar ao São José por volta das nove vou com sorte. Não entro às 10h00 em casa.
Chiça, as escadas do Martim Moniz até ao Hospital quase me matavam!
Sigo pelos Serviços de Urgências e vou às Admissões, passando pela Polícia.
- Espera ali na Sala de Espera. Quando ouvir o seu nome entra por ali (Serviço de Urgência) e segue para o Balcão das Mulheres. As melhoras.
- Obrigada.
Na sala de espera cheira a vomitado. Vou jantar às 10h? Se calhar bebo um chá e que se lixe, não posso ir dormir de estômago cheio.
Eu não tenho médico de família. O último foi-se embora e os doentes não foram reencaminhados para outro. A quem é que eu escrevo a chatear os cornos em relação a este assunto? Outra coisa muito gira também: sou dadora de sangue. Apresentei o cartão de dadora na SAP e o PC decretou: não isenta. Não isenta uma porra! Aparentemente isto já aconteceu a muitos. Mas a senhora da recepção não me cobrou nada à mesma (simpática). Porém. Tenho de ir ao Instituto Português do Sangue e actualizar o cartão e depois ir ao Centro de Saúde da minha residência para colocar a informação de que sou dadora no cartão de utente. Isto não era mais fácil carimbar a testa? Mas para quê tanta merdinha, porra? Tanta porcariazinha de burocracia, chiça.
Ainda não me chamaram.
Ainda encho o bloco, minúsculo, antes de ser atendida.
Sabem o que eu gostava? Queixar-me de não ter médico de família e, devido à enorme importância do meu blog (eu ouvi essas risadas cínicas, meus sacanas), ter o problema resolvido em dois dias. Ah isso é que eu gostava. Infelizmente não sou o Abrupto.
Na casa de banho leio na porta: queres conhecer um gajo todo bom liga para (o resto foi riscado). O Hospital até providencia a diversão. Bendito.
Ainda não me chamaram.
Não era suposto ser “via azul? Será que o oftalmologista está cá? Estará a dormir? A ver o Serviço de Urgência, os episódios antigos onde entra o George Clooney (não o acho assim tão bonito, a propósito)?
Já chamaram uma data de pessoas, menos a mim.
- Preciosa Martins F. C.
Olha, bom nome. Ver se o uso. Dona Preciosa, senhora pouco bondosa.
- Laurinda C. Balcão de Mulheres.
Porra, quando é que me chamam? Chego a casa à meia-noite? É chegar e ir para a cama, tenho de me levantar cedo. Depois é um castigo para me arrastar para fora do sono.
A maioria do pessoal à espera é malta nova, 20’s, 30’s, 40’s. Só vejo uma senhora de bengala.
Dona Preciosa, a da bengala ardilosa!
(Carla, no altifalante, soa como Cara.)
Há quadros da instituição e informações ao longo da parede.
21h15. Ainda não me chamaram.
Não – chamaram agora.
Fui, através do Serviço de Urgência. Mandaram-me de volta para a Sala de Espera. Quando chamarem novamente dirijo-me ao balcão de oftalmologia. São 21h20. Chegarei à uma da manhã a casa?
No Balcão das Mulheres, logo de início, havia três ou quatro macas com doentes e mais uma data de pessoas sentadas e em pé, falando com os médicos.
A senhora de bengala vem a passar por mim. Anda com dificuldade, coxeia da perna esquerda. Se chegar a velha (a minha carta astral assegura-me que viverei uma vida longa) não quero depender de ninguém (influência da lua em Sagitário, se não me engano). Nem quero aborrecer ninguém com lamúrias, dói-me isto, dói-me aquilo. Dói-me tude tude tude. O único remédio é o exercício físico regular. As minhas duas avós têm problemas cardíacos, suponho que isso é de esperar. Logo se vê.
São 21h26. Ainda não me chamaram. Chegarei às 02h a casa?
A parede da Sala de Espera foi coberta, a dois terços, com pequenos quadrados azuis. O último terço foi reservado à tinta branca. Há uma faixa de madeira à altura das ancas.
21h28. Ainda não me chamaram.
Ah, quem me dera ser rica, podia ficar doente à vontade.
Duas plantas artificiais aos cantos.
- Ângela Silva QualquerCoisa. Balcão de mulher.
Eu ainda escrevo uma epopeia aqui. Já fumegava pelos ouvidos se não me distraísse a escrever.
Chegarei às 03h da matina a casa? Eu hoje não janto, ‘tá visto.
Os portugueses sabem esperar. Estão habituados às secas. Armam-se daquele olhar vazio, oco, ausente.
- Rosalina S.
Isto é uma catrefa de nomes interessantes para nomear personagens.
- Bom dia, D. Rosalina!
- Bons-dias, D. Preciosa!
- Ora onde é que vai?
- Vou ao talho! E vossemecê?
- Vou ali fazer um recado. Então até logo.
- Até mais logo.
(Sim, parece-me que ainda sai daqui uma epopeia.)
21h35. Hoje não me chamam. Talvez à meia-noite.
- Miduína M. P.
Descobrirão a minha múmia com pó e teias de aranhas, agarrada a um pequeno bloco quadriculado e a uma caneta vermelha de ponta de feltro.
- T. Mancore.
Mancore? Se for este o apelido, é giro. Pelo altifalante há ocasiões em que não se percebem os nomes.
Mas será que era para eu ter ido logo ao tal do balcão de oftalmologia e não vir para a Sala de Espera novamente? Será que me enganei?
A quem é que chateio o juízo para porem um médico de família na minha zona? Desconfio que terei maior sorte em confiar nas probabilidades de ganhar o euromilhões do que confiar nas promessas de políticos. Algumas devem ter sido feitas no caso dos médicos de família, decerto. Nem preciso conhecer as promessas de cor para sabê-lo.
Aqui, na Sala de Espera, sem televisão, informo, ainda completo duas ou três epopeias. Escritas em grego. Tenho tempo de sobra para aprender o idioma.
Ó porra, chamem-me!
Caracinhas.
Uma mulher, de calças e blusão de ganga, dorme com o tronco apoiado na outra cadeira. Eu ainda baptizo os meus netos aqui.
Duas cadeiras adiante da mulher um homem calvo dormita sentado com as mãos entrelaçadas. Mas será que o oftalmologista teve uma crise de vocação e decidiu mudar de carreira? Ou estará a terminar o curso?
Ah, quem me dera ter bago para ir a um particular.
- Joana A. Vá para o otorrino! – ordena a voz feminina no altifalante.
Enfim a mulher que dormia é chamada ao otorrino. Estava cá antes de mim. Calculo que chegou quando ainda era bebé de colo, pois a mãe acompanha-a.
Daqui a pouco gasto o bloco de apontamentos. Ai, doem-me as costas.
21h48. Ainda não me chamaram.
O cavalheiro calvo dorme, a cabeça pende para o peito e tem o pé esquerdo descalço. O oftalmologista descobriu que a mulher lhe é infiel e resolveu salvar a honra, exigindo um duelo de espadas, o que explica a demora. Vou na vigésima terceira folha do bloco, escritas numa face. Com o tempo que gastei para vir e aguardar podia ter ido a Espanha e voltado, vai uma aposta? Podia lá ter ido
21h54. Chamaram-me.
O oftalmologista é espanhol. Deve ter vindo de Espanha.
De urgência.
== == == ==
Tenho uma infecção na córnea do olho. Os meus dias de pirata voltaram. Se soubesse não tinha trespassado o papagaio e a canoa, eish. Bolas, isto podia ficar mau sem tratamento. Infecção na córnea. Antibióticos, pingos, pomada. Não posso perder a visão. Depois como escreveria? Não – os olhos não.
São 22h21.
nas prisões do meu peito há um animal
louro exo-esqueleto transparente
agarrado como um piercing
estende as patas articuladas
em anéis de platina
à noite espreita-me e sai
quando caio nos sonhos que me envia
percorre o universo pluridimensional
que é o nosso
tenta regressar
ao outro mundo de onde veio
mas a maldição que o prende
ao meu coração doente
não lhe permite
o perdão
ficará para sempre
ligado ao desígnio
que o fez prender-se a mim
como um piercing
m.f.s.
(Aqui.)
louro exo-esqueleto transparente
agarrado como um piercing
estende as patas articuladas
em anéis de platina
à noite espreita-me e sai
quando caio nos sonhos que me envia
percorre o universo pluridimensional
que é o nosso
tenta regressar
ao outro mundo de onde veio
mas a maldição que o prende
ao meu coração doente
não lhe permite
o perdão
ficará para sempre
ligado ao desígnio
que o fez prender-se a mim
como um piercing
m.f.s.
(Aqui.)
Capítulo 4 - A Imortalidade
Paro ao pé de uma oliveira, desmorono e fecho os olhos. Quando acordo é dia e estou no Bairro. Dormi a noite inteira sob a árvore, sono de cadáver. A roupa acumulou a humidade da noite e com a molha o frio arrepanha-me os ossos. Espirro. Estremeço. Olho em redor. Nem sinal ao longe, no horizonte, da casa misteriosa. É cedo. Pelo menos seis e meia da manhã. A Peixaria acabou de abrir portas. A vizinha Aldina passa com o cesto de compras. Ao peixe tem de se ir cedo senão fica muito escolhido. Acocorada debaixo da oliveira, a abraçar-me, a D. Aldina não me vê. Passa adiante a passo estugado e enérgico, apesar da hora. Sou noctívaga. Acordar às oito é um castigo, uma tortura inquisitória.
Caminho até a casa (que fica perto), coxeando, a dor diminuíra desde ontem. Atravesso um parco nevoeiro, inexistente nas ruas anteriores. Abro a porta e só então penso no meu marido. Estive fora a noite toda, saí ontem para fazer compras e volto agora. Já deve ter chamado a polícia. Fecho a porta estranhando não o ver correr para mim, com desespero e alívio. Continuo enregelada. Quero tomar um banho longo e quente, amolecer a pele e esquecer-me de tudo. Quero fechar os olhos e enterrar-me na cama e dormir doze horas. Graças a Deus é Sábado. Não aguentaria o dia de expediente. Na cozinha bebo um copo de água e, subitâneo, o meu marido dá-me um beijo enquanto estou de costas, está de partida para o turno de vigilância, diz-me que está atrasado e pede desculpas por não ter dormido comigo, mas viera demasiado tarde ontem. “Não quis acordar-te, dormi no outro quarto. Venho às cinco. Até logo.”
- Até logo... (cont.)
Participem também no Super desafio: Narrativa de ficção. Podem participar até 20 de Agosto. Vá lá, 15 mil palavras não é assim tão difícil, podem ir fazendo aos bocadinhos. Ainda têm tempo.
Só é escritor quem escreve. Não há outra maneira.
Paro ao pé de uma oliveira, desmorono e fecho os olhos. Quando acordo é dia e estou no Bairro. Dormi a noite inteira sob a árvore, sono de cadáver. A roupa acumulou a humidade da noite e com a molha o frio arrepanha-me os ossos. Espirro. Estremeço. Olho em redor. Nem sinal ao longe, no horizonte, da casa misteriosa. É cedo. Pelo menos seis e meia da manhã. A Peixaria acabou de abrir portas. A vizinha Aldina passa com o cesto de compras. Ao peixe tem de se ir cedo senão fica muito escolhido. Acocorada debaixo da oliveira, a abraçar-me, a D. Aldina não me vê. Passa adiante a passo estugado e enérgico, apesar da hora. Sou noctívaga. Acordar às oito é um castigo, uma tortura inquisitória.
Caminho até a casa (que fica perto), coxeando, a dor diminuíra desde ontem. Atravesso um parco nevoeiro, inexistente nas ruas anteriores. Abro a porta e só então penso no meu marido. Estive fora a noite toda, saí ontem para fazer compras e volto agora. Já deve ter chamado a polícia. Fecho a porta estranhando não o ver correr para mim, com desespero e alívio. Continuo enregelada. Quero tomar um banho longo e quente, amolecer a pele e esquecer-me de tudo. Quero fechar os olhos e enterrar-me na cama e dormir doze horas. Graças a Deus é Sábado. Não aguentaria o dia de expediente. Na cozinha bebo um copo de água e, subitâneo, o meu marido dá-me um beijo enquanto estou de costas, está de partida para o turno de vigilância, diz-me que está atrasado e pede desculpas por não ter dormido comigo, mas viera demasiado tarde ontem. “Não quis acordar-te, dormi no outro quarto. Venho às cinco. Até logo.”
- Até logo... (cont.)
Participem também no Super desafio: Narrativa de ficção. Podem participar até 20 de Agosto. Vá lá, 15 mil palavras não é assim tão difícil, podem ir fazendo aos bocadinhos. Ainda têm tempo.
Só é escritor quem escreve. Não há outra maneira.
Do Portugal Profundo
"O Ministério Público, através do Procurador-Adjunto do Tribunal Judicial de Alcobaça, deduziu acusação contra mim.
Sou acusado de um crime de desobediência simples por alegadamente ter publicado, cópia de peças do processo da Casa Pia que um juiz, que interveio no processo, teria proibido que fossem publicadas - para proteger a identidade das vítimas, coisa que eu sempre fiz (ao contrário de Jorge van Krieken do Repórter X que publica, em completa impunidade, há largos meses, a identificação das vítimas)...
(...)
Muito do que publiquei já tinha saído no Repórter X - na maior impunidade, apesar de referir os nomes e a identificação das vítimas! -, nos jornais e media."
Merda de país. Há filhos e enteados. O Salazar já não foi sepultado? Isto não é censura, pura e simples? Ainda estamos no 24 de Abril de 1974?
Quando é que esta Justiça se reforma, ó Sócrates?
"O Ministério Público, através do Procurador-Adjunto do Tribunal Judicial de Alcobaça, deduziu acusação contra mim.
Sou acusado de um crime de desobediência simples por alegadamente ter publicado, cópia de peças do processo da Casa Pia que um juiz, que interveio no processo, teria proibido que fossem publicadas - para proteger a identidade das vítimas, coisa que eu sempre fiz (ao contrário de Jorge van Krieken do Repórter X que publica, em completa impunidade, há largos meses, a identificação das vítimas)...
(...)
Muito do que publiquei já tinha saído no Repórter X - na maior impunidade, apesar de referir os nomes e a identificação das vítimas! -, nos jornais e media."
Merda de país. Há filhos e enteados. O Salazar já não foi sepultado? Isto não é censura, pura e simples? Ainda estamos no 24 de Abril de 1974?
Quando é que esta Justiça se reforma, ó Sócrates?
quarta-feira, abril 06, 2005
P'los Animais
"A grandeza de uma nação e o seu progresso moral, podem ser avaliados pela forma como tratam os seus animais., Mahatma Gandhi"
"A grandeza de uma nação e o seu progresso moral, podem ser avaliados pela forma como tratam os seus animais., Mahatma Gandhi"
sábado, abril 02, 2005
Bentley – é aquela Base...
O senhor Bentley, refinada besta, agora deu em ir a Belém distribuir pontapés ao acaso nos glúteos dos Senhores Deputados. Mas este sacana tem coisas... eish, francamente.
- O menino – disse o senhor Bentley de ar contrito, pavorosamente velho e encardido como as traças múmias esquecidas no roupeiro, treinara os músculos faciais para moldarem as rugas apropriadas a cada ocasião e no momento representava, perfeito, o papel de cavalheiro idoso reformado, andou a lutar lá pelas Africas, naquele tempo é que era bom, os maganos dos pretos agora pensam que são gente e já nem os podemos tratar por tu a não ser que sejamos médicos.
(Pigarreou. Soltou o escarro viscoso, grande e verde para o chão – semelhando um alien abortado –, quase abalroou a biqueira de um Agente da Autoridade, ocupado a passar uma contra-ordenação grave a um sujeito que cometera o malfeitoria de estacionar na passadeira.)
- O menino – dizia ele a certo deputado do PS que arrebanhara pelo fundilho das calças e transportava nos ares, mercê do seu obediente chapéu-de-chuva voador – não estrebuche que me estraga a manicura. Vê as vistas, vê as vistas, pá, porque se te mexes muito o tecido dá de si e arreias com os cornos no chão – aconselhou, com a máscara do cuidado sério posta.
- Ouve lá – prosseguiu -, essa ideia da base de dados genética nacional... tem pernas para andar? É uma ideia valente. Grandes colhões vocês têm, sim senhor. Valentões! Meus malandrecos! Eu a pensar que eram um choninhas, uns coninhas de merda e afinal. Afinal têm-nos no sítio! Sniff – a solitária lágrima migrou da (falsa) catarata para a bochecha descaída. Foi ao SEF pedir os papéis e recambiaram-na de volta ao olho. Ela então veio a salto, através do nariz, viagem acidentada, mas o vento apanhou-a e dissipou-a nas nuvens. Não houve velório.
- Eu emociono-me com os corajosos. Malta desta é que era boa lá no Mato. RA-TA-TA-TA-TA! Limpinho.
Esclareçamos: o senhor Bentley é mau. Acha-se iluminado. Tem considerações zen grandiosas. Talvez seja superior a qualquer outro. Talvez seja um Buda vivo (embora duvidemos).
- Ideia genial, essa. Pode usar-se para tudo. Por exemplo: antes de consumares o teu dever marital, meu sacana – disse, enquanto o deputado se esganava em pânico apercebendo-se que o cinto ameaçava deslaçar –, tiras uma amostra à legítima e vês, lá no Banco de Dados, se é compatível com alguém. Podes fazer isto todos os dias e assegurares-te da sua canina fidelidade. Canina fidelidade... recorda-me o povo português, mas adiante. Tanta coisa que se pode fazer com essa merdinha. Não estrebuches, porra, depois não consigo hora com a Vanusa. Tu vais votar a favor desse projecto-lei, decerto? Tu e os companheiros, presumo. Ah, terei de conversar com eles, um a um. Dar a minha genuína aprovação e o meu conselho. Excelente ideia!
(Se bem que não seja de todo impossível, consideramos, que o Enraba-Passarinhos – a.k.a. Senhor Bentley – retenha antes a memória do Nirvana depois de o ter perdido.)
- Aliás, exames ao sangue mensais a toda a população portuguesa deviam ser obrigatórios. Se não fizeram alguma hão-de fazê-la ou estão a matutar nela. Há que sabotar estes criminosos em potência. Criminosos? Qual quê, terroristas! Não vai ser catita, meu menino, veres as tuas crias, a tua cônjuge, os teus papás decrépitos a alinharem mês após mês para os exames da praxe? E se um for apanhado? Ora Pena de Morte, pois claro!, para o delinquente imbecil, pensa enganar o soberano Estado. Cadeira com ele!
O cinto rebentou, deu a alminha aos pombos, e as calças quase rasgaram, mas o Enraba-Passarinhos deu um jeito no pulso de modo que o deputado do XVII Governo Constitucional não caiu de trombas na estrada, ia estragar o nariz, belo apêndice, as actrizes de Hollywood invejam-no. Correm rumores que Joaquim de Almeida lhe pediu o molde, mas divagamos.
- Belíssima ideia, a Base de Dados Genética. Melhor ainda seria um código de barras na testa, nos joelhos ou no rabo, e fazer depender dele qualquer actividade humana. Sem código não poder fazer compras, nem um pãozito, nem andar de transportes públicos ou ir para o trabalho e entrar em casa. Refere lá isso ao nosso Primeiro e ao gajo da SIS, que é uma cabeça. E ainda dizem que os cérebros fogem para a estranja. Mentira. Ficam por cá e arranjam-nos a vida. Vou-te acostar aqui, tenho encontro agendado com o Sardas. Vou instá-lo, urgir de joelhos, choramingão, para que assine este novo marco da refundação pátria! Ou beijar-lhe – (babar-lhe, clarificamos) – as mãos se não for necessário persuadi-lo de nada. Há homens iluminados, gaiato. Com eles partilhamos fraternais elos de espírito. Reconhecemo-nos de longe.
E alçou, de chapéu-de-chuva aberto, pelos ares, voando, voando, enquanto o homem se mantinha em frágil equilíbrio no cimo da mão esquerda de Cristo-Rei, repetindo-se mentalmente: “Não te mexas, não olhes para baixo. Não te mexas. Não olhes para baixo.”
Julgando ser nova tentativa de suicídio do gajo das galinhas, os Media deslocaram-se ao local, a SIC alugou um helicóptero, mas perderam o interesse ao sabê-lo deputado e recolheram às Redacções.
O senhor Bentley, refinada besta, agora deu em ir a Belém distribuir pontapés ao acaso nos glúteos dos Senhores Deputados. Mas este sacana tem coisas... eish, francamente.
- O menino – disse o senhor Bentley de ar contrito, pavorosamente velho e encardido como as traças múmias esquecidas no roupeiro, treinara os músculos faciais para moldarem as rugas apropriadas a cada ocasião e no momento representava, perfeito, o papel de cavalheiro idoso reformado, andou a lutar lá pelas Africas, naquele tempo é que era bom, os maganos dos pretos agora pensam que são gente e já nem os podemos tratar por tu a não ser que sejamos médicos.
(Pigarreou. Soltou o escarro viscoso, grande e verde para o chão – semelhando um alien abortado –, quase abalroou a biqueira de um Agente da Autoridade, ocupado a passar uma contra-ordenação grave a um sujeito que cometera o malfeitoria de estacionar na passadeira.)
- O menino – dizia ele a certo deputado do PS que arrebanhara pelo fundilho das calças e transportava nos ares, mercê do seu obediente chapéu-de-chuva voador – não estrebuche que me estraga a manicura. Vê as vistas, vê as vistas, pá, porque se te mexes muito o tecido dá de si e arreias com os cornos no chão – aconselhou, com a máscara do cuidado sério posta.
- Ouve lá – prosseguiu -, essa ideia da base de dados genética nacional... tem pernas para andar? É uma ideia valente. Grandes colhões vocês têm, sim senhor. Valentões! Meus malandrecos! Eu a pensar que eram um choninhas, uns coninhas de merda e afinal. Afinal têm-nos no sítio! Sniff – a solitária lágrima migrou da (falsa) catarata para a bochecha descaída. Foi ao SEF pedir os papéis e recambiaram-na de volta ao olho. Ela então veio a salto, através do nariz, viagem acidentada, mas o vento apanhou-a e dissipou-a nas nuvens. Não houve velório.
- Eu emociono-me com os corajosos. Malta desta é que era boa lá no Mato. RA-TA-TA-TA-TA! Limpinho.
Esclareçamos: o senhor Bentley é mau. Acha-se iluminado. Tem considerações zen grandiosas. Talvez seja superior a qualquer outro. Talvez seja um Buda vivo (embora duvidemos).
- Ideia genial, essa. Pode usar-se para tudo. Por exemplo: antes de consumares o teu dever marital, meu sacana – disse, enquanto o deputado se esganava em pânico apercebendo-se que o cinto ameaçava deslaçar –, tiras uma amostra à legítima e vês, lá no Banco de Dados, se é compatível com alguém. Podes fazer isto todos os dias e assegurares-te da sua canina fidelidade. Canina fidelidade... recorda-me o povo português, mas adiante. Tanta coisa que se pode fazer com essa merdinha. Não estrebuches, porra, depois não consigo hora com a Vanusa. Tu vais votar a favor desse projecto-lei, decerto? Tu e os companheiros, presumo. Ah, terei de conversar com eles, um a um. Dar a minha genuína aprovação e o meu conselho. Excelente ideia!
(Se bem que não seja de todo impossível, consideramos, que o Enraba-Passarinhos – a.k.a. Senhor Bentley – retenha antes a memória do Nirvana depois de o ter perdido.)
- Aliás, exames ao sangue mensais a toda a população portuguesa deviam ser obrigatórios. Se não fizeram alguma hão-de fazê-la ou estão a matutar nela. Há que sabotar estes criminosos em potência. Criminosos? Qual quê, terroristas! Não vai ser catita, meu menino, veres as tuas crias, a tua cônjuge, os teus papás decrépitos a alinharem mês após mês para os exames da praxe? E se um for apanhado? Ora Pena de Morte, pois claro!, para o delinquente imbecil, pensa enganar o soberano Estado. Cadeira com ele!
O cinto rebentou, deu a alminha aos pombos, e as calças quase rasgaram, mas o Enraba-Passarinhos deu um jeito no pulso de modo que o deputado do XVII Governo Constitucional não caiu de trombas na estrada, ia estragar o nariz, belo apêndice, as actrizes de Hollywood invejam-no. Correm rumores que Joaquim de Almeida lhe pediu o molde, mas divagamos.
- Belíssima ideia, a Base de Dados Genética. Melhor ainda seria um código de barras na testa, nos joelhos ou no rabo, e fazer depender dele qualquer actividade humana. Sem código não poder fazer compras, nem um pãozito, nem andar de transportes públicos ou ir para o trabalho e entrar em casa. Refere lá isso ao nosso Primeiro e ao gajo da SIS, que é uma cabeça. E ainda dizem que os cérebros fogem para a estranja. Mentira. Ficam por cá e arranjam-nos a vida. Vou-te acostar aqui, tenho encontro agendado com o Sardas. Vou instá-lo, urgir de joelhos, choramingão, para que assine este novo marco da refundação pátria! Ou beijar-lhe – (babar-lhe, clarificamos) – as mãos se não for necessário persuadi-lo de nada. Há homens iluminados, gaiato. Com eles partilhamos fraternais elos de espírito. Reconhecemo-nos de longe.
E alçou, de chapéu-de-chuva aberto, pelos ares, voando, voando, enquanto o homem se mantinha em frágil equilíbrio no cimo da mão esquerda de Cristo-Rei, repetindo-se mentalmente: “Não te mexas, não olhes para baixo. Não te mexas. Não olhes para baixo.”
Julgando ser nova tentativa de suicídio do gajo das galinhas, os Media deslocaram-se ao local, a SIC alugou um helicóptero, mas perderam o interesse ao sabê-lo deputado e recolheram às Redacções.
sexta-feira, abril 01, 2005
Há uma pessoa que ainda não morreu, mas toda a gente fala dele como se já estivesse morto. Mas se ainda não morreu, porque fingem a sua morte?
E, porém, desgraçado de quem tem fama – não tem o privilégio de viver uma morte privada. Eu quero uma morte privada.
No outro dia tentei falar do tema Morte com o meu pai – ele não quis ouvir. Alguém quererá? Ou só quem está mais próximo dela faz ouvidos moucos? Não tenho fascínio por isto, antes curiosidade. Porque eu quero saber o que me espera. E não acredito grandemente em infernos. As parábolas orientais parecem-me lógicas. O inferno e o céu já cá estão e nós escolhemos ou não vivê-los.
Desgraçado do homem, nem pode morrer em paz, com a privacidade intacta.
A minha avó teme a morte. Tem oitenta e oito anos.
Eu digo (não a ela): a morte é uma libertação. Vamos para um lugar melhor. Há quem me estranhe a conversa porque sou agnóstica. O meu problema é que tenho dificuldade em encontrar e manter fundamentalismos – no sentido de Ideias Fundamentais. Não as tenho. Segundo o meu mapa astral tenho de encontrar os meus valores (espirituais e outros). Sinto dificuldade em acreditar por isso acho quase impossível que os outros não tenham dificuldades nenhumas. Como podem não as ter? (Como se atrevem a não tê-las?!)
Coitado do homem, trabalhou até morrer, mesmo até ao fim, nem reforma teve, nem descanso. Acho isto um martírio e uma parvoíce. Tenho pena dele.
A Morte é um recreio. É um repouso. O verdadeiro trabalho é estar cá, na Terra, vivo.
Gosto de pensar nestas coisas. Tenho o Sol na casa nove, a casa do espírito (se não me engano). Gostava de lá ter o Júpiter. Tinha ido para vigária, lol! Quer dizer, não sei. Ainda tenho mais uns anitos para pensar sobre estes assuntos. Pelo menos meio século, talvez mais. Uma tia do meu pai morreu com noventa e cinco anos, santo Deus. Se eu durar tanto o que farei para não me aborrecer?
O homem já morreu?
Há pessoas que, por vê-las todos os dias, por conhecê-las de vista, são referências na nossa paisagem pessoal. Aquele senhor que costuma estar no café; o outro senhor que tem bengala e o cabelo muito branco e se costuma ver na rua; o outro que anda de mota, apesar da idade; aquela senhora que é casada com o antigo funcionário do nosso liceu. Morrem e de súbito a nossa paisagem íntima muda. É estranho.
Qual é o grande problema com a morte? Temer o quê, o juízo final? Segundo relatos de quem teve experiências de quase-morte, quem nos julgamos somos nós próprios. Nem Deus nos julga (só por isso talvez reavalie o meu agnosticismo). Eu, nisto, vou pela lógica. Fui educada na ciência como a maioria dos ocidentais. Há coisas que me parecem lógicas, coerentes. A Crença, a fé pela fé, sem nada por trás a suportá-la – não me parece racional. Eu tenho de pensar nisto sempre, sempre – fazer reavaliações constantes. Tal como na ciência não consigo ter verdades eternas e imutáveis.
O homem vai morrer. Espero que tenha uma boa viagem, espero que não sofra no falecimento e no tempo que o antecede, espero que esta malta toda a rezar pela sua vida – o liberte. O liberte para a morte.
Talvez quando eu for muito, muito velha tenha medo. Por enquanto não tenho, mas, em verdade, nunca vi a Morte de frente. Nunca tomámos chá nem lhe dei bolinhos. Nunca tivemos conversas sobre a Casa Pia e as novelas da TVI (que eu não assisto) ou as novelas da SIC (que eu não assisto). Podes aparecer por cá, a sério.
Só não tragas o instrumento do ofício.
E, porém, desgraçado de quem tem fama – não tem o privilégio de viver uma morte privada. Eu quero uma morte privada.
No outro dia tentei falar do tema Morte com o meu pai – ele não quis ouvir. Alguém quererá? Ou só quem está mais próximo dela faz ouvidos moucos? Não tenho fascínio por isto, antes curiosidade. Porque eu quero saber o que me espera. E não acredito grandemente em infernos. As parábolas orientais parecem-me lógicas. O inferno e o céu já cá estão e nós escolhemos ou não vivê-los.
Desgraçado do homem, nem pode morrer em paz, com a privacidade intacta.
A minha avó teme a morte. Tem oitenta e oito anos.
Eu digo (não a ela): a morte é uma libertação. Vamos para um lugar melhor. Há quem me estranhe a conversa porque sou agnóstica. O meu problema é que tenho dificuldade em encontrar e manter fundamentalismos – no sentido de Ideias Fundamentais. Não as tenho. Segundo o meu mapa astral tenho de encontrar os meus valores (espirituais e outros). Sinto dificuldade em acreditar por isso acho quase impossível que os outros não tenham dificuldades nenhumas. Como podem não as ter? (Como se atrevem a não tê-las?!)
Coitado do homem, trabalhou até morrer, mesmo até ao fim, nem reforma teve, nem descanso. Acho isto um martírio e uma parvoíce. Tenho pena dele.
A Morte é um recreio. É um repouso. O verdadeiro trabalho é estar cá, na Terra, vivo.
Gosto de pensar nestas coisas. Tenho o Sol na casa nove, a casa do espírito (se não me engano). Gostava de lá ter o Júpiter. Tinha ido para vigária, lol! Quer dizer, não sei. Ainda tenho mais uns anitos para pensar sobre estes assuntos. Pelo menos meio século, talvez mais. Uma tia do meu pai morreu com noventa e cinco anos, santo Deus. Se eu durar tanto o que farei para não me aborrecer?
O homem já morreu?
Há pessoas que, por vê-las todos os dias, por conhecê-las de vista, são referências na nossa paisagem pessoal. Aquele senhor que costuma estar no café; o outro senhor que tem bengala e o cabelo muito branco e se costuma ver na rua; o outro que anda de mota, apesar da idade; aquela senhora que é casada com o antigo funcionário do nosso liceu. Morrem e de súbito a nossa paisagem íntima muda. É estranho.
Qual é o grande problema com a morte? Temer o quê, o juízo final? Segundo relatos de quem teve experiências de quase-morte, quem nos julgamos somos nós próprios. Nem Deus nos julga (só por isso talvez reavalie o meu agnosticismo). Eu, nisto, vou pela lógica. Fui educada na ciência como a maioria dos ocidentais. Há coisas que me parecem lógicas, coerentes. A Crença, a fé pela fé, sem nada por trás a suportá-la – não me parece racional. Eu tenho de pensar nisto sempre, sempre – fazer reavaliações constantes. Tal como na ciência não consigo ter verdades eternas e imutáveis.
O homem vai morrer. Espero que tenha uma boa viagem, espero que não sofra no falecimento e no tempo que o antecede, espero que esta malta toda a rezar pela sua vida – o liberte. O liberte para a morte.
Talvez quando eu for muito, muito velha tenha medo. Por enquanto não tenho, mas, em verdade, nunca vi a Morte de frente. Nunca tomámos chá nem lhe dei bolinhos. Nunca tivemos conversas sobre a Casa Pia e as novelas da TVI (que eu não assisto) ou as novelas da SIC (que eu não assisto). Podes aparecer por cá, a sério.
Só não tragas o instrumento do ofício.
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