domingo, agosto 30, 2009

529 [conto]

Não estou a dizer que o tenha notado assim de imediato. Não. Veio por fases. Melhor, por ondas. Há certos acontecimentos nas nossas vidas que vêm por ondas, não sei se já repararam. Eu tenho o hábito de reparar em tudo. Reparo tanto que perco quem amo assim. Perco amizades, perco casamentos porque o marido decidiu deitar-se com uma das minhas amigas quando eu não estava em casa. E eu reparei, claro, reparei no estranho comportamento dele, a sua alegria bizarra, fora de contexto, nada a ver com o seu carácter rígido e autoritário; reparei em como se sentia de repente incomodado quando esta agora ex-amiga estava presente e em como as suas orelhas avermelhavam; reparei até em dois momentos o modo como trocaram olhares e sorriram muito sem se darem conta. Reparei que os sustentaram só mais um segundo do que era habitual, mas foi tudo. Esse segundo disse-me tudo, disse-me o resto que ainda faltava saber. Sim, foram para a cama. Fizeram amor no nosso colchão, aquele colchão que nos custou os olhos da cara e que o Normando se recusava a comprar até lhe fazer ver os benefícios da aquisição. A saúde, as costas, a postura, o melhor sono. E era verdade. Soube que, pelo conforto, tiveram de dormir na nossa cama, no nosso quarto. Soube que provavelmente se encontraram depois na casa dela. Porque era divorciada e trabalhava a meio-tempo. Ele é que arranjava umas desculpas esfarrapadas para chegar mais tarde a casa e não ter o jantar feito a horas. Muito trabalho, o chefe pediu para ficar mais um bocado. Até logo. Ele tinha sorte, eu é que muitas vezes chegava não antes da meia-noite porque, a mim sim, me obrigavam a ficar no trabalho mais horas do que devia. Em casa encontrava-o já com o duche tomado e pronto para dormir. Mas isso não vem ao caso. Divorciei-me, claro. O que eu queria ilustrar é que tenho o hábito de reparar em tudo.

Por isso foi normal quando comecei a reparar no padrão anormal dos números. De súbito o número 529 estava por toda a parte. Com certeza já ouviram falar do famoso fenómeno 11:11. Cada vez que se olha para o relógio ou para o PC ou para a televisão - e são 11:11. Certas. Sempre. 11:11 por toda a parte. Milhões já reportaram este fenómeno. Há toda a sorte de teorias. Comunicação de anjos. A recordação de algo. Mas isso a mim não me importa. Estava a suceder-me pela primeira vez e era com o 529. Olho por acaso para a fachada de um prédio e o número que vejo é este; olho o relógio e são 5:29. Acordo a meio da noite e vou ver as horas: 5:29. Nas notícias há 529 infectados só num dia de gripe A num país qualquer. 529 por todo o lado. Ora mistérios não me agradam. Dão-me cabo do juízo e a primeira coisa que quero fazer é solucioná-los. Solucioná-los para que deixe de pensar neles obsessivamente. Quando já qualquer explicação racional tinha sido posta de parte por mim, desisti e pedi a ajuda de uma amiga ligada a esoterismos e metafísicas.

“Submete-te”, disse-me ela. “Ao quê?”, perguntei. Ela encolheu os ombros e disse “Simplesmente submete-te”. A Deus, ao Universo, a quem quer que seja que esteja a tentar comunicar comigo. “Porque raio não mandam um emílio? Ou me escrevem uma carta? Um sms? Isto parece-me demasiado labiríntico.” Ela riu-se. “Todas as noites quando fores dormir pede ao teu Guia Espiritual que te ilumine e indique o significado desta ocorrência. Vais ver, resulta. Demora é tempo.” “Quanto tempo?” “Não sei. Um mês. Duas semanas. Quatro meses.”

E assim, todas as noites, como a boa rapariguinha que sou, pedi a ajuda de um suposto guia. Ou mestre. Ou Eu Superior. Até requisitei com fervor a ajuda de Deus, não obstante o meu agnosticismo. Hoje é a noite 529. Hoje será a última noite em que peço o esclarecimento deste enigma. Depois, ah, depois ataco o mistério com a resolução de um Pittbull esfomeado ao atacar a carcaça de uma ovelha.

(29-30/08/2009)

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