E eis aqui o que vou escrevendo durante as horas de trabalho...
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7 DE COPAS / MÁGICO
O Mágico tem olhos de lince. Está em sintonia com o Universo. Estuda-o. Une o cimo ao baixo, o céu à terra. É a força da Palavra a unir o material e o imaterial - concretizando-o, dando-lhe Forma. Substância.
O Mago vê a jovem mulher de costas com um xaile creme. Está em plena adoração a uma árvore. Ele aproxima-se lentamente, com um secreto temor e respeito pela insanidade de outro ser. Não se enganou. A jovem não está no seu juízo perfeito. Quando a rodeia descobre que mira com extâse sete cálices colocados no tronco da árvore. A jovem tem um ar patético e contente, lançando à vez cada uma das mãos para os diferentes cálices, mas nunca tocando nenhum, nem nunca se decidindo por um. Não veria ela, como claramente ele o via, que eram imagens irreais, hologramas? Que iriam desaparecer todas à excepção do tocado? Que não eram na verdade realidades concretas? Ilusões, todos esses cálices pelos quais ela salivava, incluindo o que por último escolhesse - porque nunca realidade nenhuma supera a ilusão, sempre superior e brilhante e perfeita. Era para isso que ela estava a olhar. Desejosa e esperançosa do que estava por vir, nem sequer notava o aqui e agora. Não via o Mágico à sua frente, perto da árvore. Nem reparava no próprio vestido, roto e sujo, nem se dava conta da própria sede e fome. Um embuste, aquela árvore. Esteve tentado a tocar num dos cálices e a terminar a ilusão, mas deteve o gesto. O Mágico sabe que só ela tem a capacidade de terminar aquilo. De parar e fazer uma escolha, por pior que seja, de rebentar a bolha à ilusão.
O Mago regressa ao caminho sem olhar para trás e é nesse momento que a jovem o nota, de costas, a afastar-se. Mas retorna a atenção para os cálices e pensa que um em particular, o que tem a caveira, é assaz interessante. Porque terá uma caveira? Avança o dedo esticado para ele, mas não o toca. Detém-se olhando longamente e reflectindo. De repente os outros cálices eclipsam-se e só resta aquele. Ao longe a figura do Mágico desvanecia-se.
Seguira o instinto. Algures por aquele caminho devia ter ido o Louco.
6 DE OUROS/ LOUCO
O homem de negócios hoje sai para fazer caridade! Uma vez a cada duas semanas atavia-se com as melhores vestimentas e sai para a rua onde, de entre o povo, escolhe uma alma maltrapilha e em necessidade com quem será magnificamente generoso. Moedas reluzentes de ouro caem de modo enfático e pomposo da sua mão bojuda para o humilde pedinte ajoelhado diante de si. É um homem orgulhoso da sua Generosidade. Acima de tudo é importante que seja visto a Doar livremente o seu dinheiro. Após a dádiva pavoneia-se altivo, muito satisfeito, pela cidade, recebendo os bons-dias respeitosos e deferentes dos cidadãos. Os que já foram alvo da sua generosidade sabem que têm de ser especialmente atenciosos com ele. A Generosidade Paga-se, afinal! Na verdade, nada naquele pobre homem é generoso ou feito de coração, o motor do pequeno teatro é outro: provém da extrema carência interior, da falta de amor, de si e pelos outros. Dando seguramente vão gostar de mim, apreciar-me! Terão de o fazer. Sim, terão. E há uma nódoa negra que lhe enche o corpo por um segundo àquele pensamento - mas logo a espanta e regressa à Imagem cultivada há décadas: o homem das dádivas! O homem que dá "sem pensar em si". Grande mentira. Se é unicamente em si que ele pensa. Mas não pode permitir que a verdade venha ao de cima. Ela está muito bem escondida, reprimida no fundo da alma, afogada nas suas carências e sentimentos negativos.
E de súbito há comoção na cidade: o Louco chegou, cabriolando, dando nas vistas nas suas vestimentas sem nexo nenhum (quantas cores tens no teu fato, ó Louco?). Na ponta do pau o lenço baila vazio. Comera as uvas, dera a pera ao cão e atara mal a trouxa, predendo os restante frutos.
As pessoas seguiram aquela figura jovial, interessadas. Até que o Louco se sentiu cansado e sentou-se numa pedra. De repente ficara com fome e sede. Olhou ao redor e viu a fonte. Foi matar a sede e, depois de o fazer, viu um homem gordo e grande à sua frente, a sorrir muito.
- De onde vens, amigo? - pergunta com jovialidade.
- Dali - apontou com o dedo para o infinito atrás de si, que já não lhe interessava. Interessava-lhe muito mais o infinito à sua frente.
O homem de negócios mediu-o e decidiu que era um maltrapilho, um perdido de Deus. Alguém que precisaria de ajuda. Pôs-lhe amigavelmente o braço sobre as costas:
- Vem, amigo, vamos comer algo que eu estou esganado!
O canito branco grunhiu e seguiu-os a certa distância.
O estranho pediu as melhores iguarias da casa. Os olhos do Louco abriam-se perante as carnes e peixes exóticos que desfilavam diante de si. O que comeu! Coelhos, perdizes, vacas inteiras, dir-se-ia. Com os restos que iam caindo para o chão o cão branco encheu também o bandulho.
Duas horas depois mal se podiam mexer. Tinham as barrigas salientes e redondas como abóboras. O canito estava de pernas para o ar e arfava com a língua vermelha fora do focinho. O homem de negócios assistia à cena satisfeito. Acabaram os três por dormir ali uma sesta. O homem de negócios não permitiu que ninguém os perturbasse. Chamou criados, mais tarde, e ordenou que fossem levados para o seu castelo no conforto de uma carruagem particular almofadada. Quando acordaram no dia seguinte um banquete digno de reis esperava-os. O homem de negócios mal comia só do gosto de os ver empanturrarem-se. Mas todo aquele tempo, aquilo por que tanto ansiava não veio: um gesto de gratidão, uma palavra, ó!, um tremor de agradecimento. Nem pedia muito. Quanto custa dizer "obrigado"?
Deu tudo ao Louco. Deu-lhe roupas, comida e abrigo. Quase lhe dava as duas filhas gémeas só da ânsia de escutar um "obrigado" sentido. Ao fim de dias, o Louco, porém, tinha a febre de partir. Não parava quieto num sítio e a roupa ornamentada e bela parecia-lhe demasiado pesada, atrapalhando-lhe os movimentos. Um fardo. Cada vez que falava em partir os olhos do estranho que lhe dera comida e guarida mareavam-se de modo que ele se calava para não o transtornar. Mas não suportava mais tal vida.
Uma noite levantou-se antes da madrugada, trocou as bonitas roupas pelas suas antigas, mais leves, resgatou o velho pau com o lenço na ponta (estava no molho a ser queimado no dia seguinte na lareira) - e pôs-se a caminho. O canito deu pela falta dele quando o Louco já estava longe, à saída da cidade. Aquele tolo! Deixar este paraíso! Que tonto!
Só o apanhou três horas depois.
De manhã o antigo protector notou o desaparecimento repentino dos hóspedes. Concluiu logo que tinham partido. Ainda tinha a esperança de descobrir que o Louco roubara algo, e ficou muito desiludido quando viu que o tolo trocara até a roupa luxuosa pelos trapos que trouxera. Durante dias andou de orelha murcha, até quando ia à cidade. Já não dava. Nem se lembrava. Um homem velho e muito pobre, que nunca lhe tinha pedido nada porque lhe via com clareza a mancha negra no meio do peito, um dia ajoelhou-se aos pés do triste homem de negócios e disse:
- Senhor, por favor, dá-me uma moeda, por mais pequena que seja, que eu há quatro dias que não como.
O outro subitamente alegrou-se e mareou-o com uma chuva de moedas pequeninas e brilhantes.
E agora, quem é que estava a ser generoso com quem?
(24-27/07/09)
(1321 palavras)
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