A VIAGEM DO MÁGICO E DO LOUCO (CONT)
O Rei de espadas era o homem consumado da lógica e da estratégica, ganha a custo com a maturidade e as lições de vida. Herdou um pequeno reino quando nem tinha dezasseis anos e quarenta anos depois construíra um império, alargando o território com conquistas, acordos de paz e casamentos (seus e dos filhos). Este Rei tinha fama de justo (se bem que às vezes um pouco implacável), os veredictos eram acertados e em ocasiões duros. Era um homem que cortava a rente sem deter-se em floreados. Instintivamente sabia o que seria correcto, por mais que doesse. Quem quer que falasse com ele sabia que só ia ouvir a verdade. Tinha uma grande capacidade para ser imparcial e, apesar de não ser falho de sentimentos, sabia temperar a razão e a emoção.
Ao fim de meses num impasse, em batalha com outro exército de um reino próximo que teimava em não submeter-se, o Rei de Espadas tinha chegado à conclusão que outra via teria de ser tomada: a diplomática. O Rei continuava a querer a posse deste Reino pois dar-lhe-ia acesso directo ao mar, logo, a maiores oportunidades de comércio (evitando por completo as tribos bárbaras do Norte que roubavam muitas das caravanas para o exterior). Contudo ele estava disposto a esperar anos se fosse preciso. Entretanto de nada valia delapidar os seus recursos humanos, militares e financeiros numa batalha e guerra obviamente empatadas, mais valia dizer: perdidas.
É neste cenário que o Louco aparece, cabriolando, assobiando, gozando o calor do sol na face enquanto o cão atrás de si mal pode andar, tão morto de sede estava.
- Quem é aquele homem? - pergunta o Rei de Espadas no limite da sua tenda. Avistara-o ao longe e todo o exército o observava, aquele homem que não parecia muito bom da tola, a andar aos saltinhos (com um cãozito meio morto atrás) no meio do terreno onde nem há quatro dias houvera uma carnificina violenta.
- Não sabemos, Senhor. Acabou de aparecer - respondeu o servo.
O Rei de Espadas esfregou a barba e mandou que o trouxessem à sua presença.
Dois guerreiros pujantes e musculados pegaram no Louco e arrastaram-no até à tenda do Rei.
O Louco foi jogado aos pés daquela magnífica e aterrorizante figura, sentada num cadeirão enorme.
De joelhos ele implorou:
- Por favor, não me mates! Não sei o que fiz! O que fiz de errado? Prometo que não volto a fazê-lo!
Estava aterrorizado. Em segundos questionou a sua viagem, a razão porque a empreendera. Fora aprendiz do Mágico durante tantos anos, em criança, mas a juventude chegara e ele queria ver o Mundo! Devia ser deveras um tolo, como os outros o chamavam. Ajoelhado, escondeu a cabeça entre as mãos e esperou pelo golpe fatal daquele quase gigante à sua frente.
De súbito o canito branco alcançou-o, cansado, mas teve forças de se meter entre o Rei e o Louco e ladrar furiosamente. Para o matares vais ter de passar por mim!, dizia ele ao Rei. O Rei de Espadas desatou num riso desenfreado que fez desmaiar o cão de susto e espantou o Louco que, a seguir, sentiu uma mão carinhosa a afagar-lhe o cabelo.
- Levanta-te. Quem tem servos tão corajosos e leais - apontou o cão de pernas para o ar - deve ser um homem valente.
Deram água ao cão e alimentaram-no quando enfim acordou. O Louco também foi alimentado. Nem sequer se lembrou de pensar na sua sorte. Cada vez que precisava de comer o destino providenciava.
Passaram a noite no maior conforto e no dia seguinte o Rei de Espadas foi directo ao assunto:
- Quero que vás ao meu oponente apresentar uma proposta de tréguas.
- E-eu? - balbuciou o Louco. Mas quem sou eu? - um homem com a inocência de uma criança, sem um osso de decepção no corpo. E isso era exactamente o que convinha ao Rei de Espadas naquele momento.
- És o homem apropriado para a missão - respondeu o Rei e colocou-lhe com gravidade a mão no ombro. Depois entregou-lhe um canudo longo com uma fita para o transportar.
- No interior estão as condições. Espera pela resposta.
- Não sei se sou a pessoa indica... - mas o Rei cortou-lhe a palavra.
- És sim. É um favor pessoal que me fazes - disse pegando-lhe nos ombros e estreitando-o contra si. - Somos amigos, não é verdade! - gritou com um riso de trovão.
- É... é - e o Louco lá foi, sentindo uma estranha responsabilidade que não queria sentir, uma responsabilidade com um peso esmagador.
O cão branco seguiu-o a medo, desconfiado. E se apanha com uma flecha? E se lhe dão uma espadeirada? Pela primeira vez os passos do Louco não eram confiantes, mas sim hesitantes e trémulos.
O outro Rei tinha o cabelo Ruivo e ar feroz. Leu os papéis do canudo sem uma palavra para o homenzinho trémulo que trouxera a mensagem.
O outro não dava ponto sem nó, pensou o Rei Vermelho. Isto devia trazer água no bico. Ordenou que o prendessem e o torturassem até revelar os verdadeiros planos do Rei de Espadas. Entretanto deu ordens ao exército para se preparar para o provável ataque iminente. Lá voltaram a arrastar o pobre do Louco, desta vez por outros dois matulões, para dentro de um buraco cavado no chão.
- Ó, bem bonita a fizeste - pensou o Louco quando os ossos bateram na terra, mas, estranhamente, não tinha medo. Sentiu falta de algo. O pau. Já não tinha o pau. E o cão já não o seguia. Que cão tão estranho era aquele, tentou lembrar-se da primeira vez em que o vira - sem resultado.
O canito branco foi a medo até à borda do buraco, mas logo se escondeu atrás de uma moita quando viu outro soldado ir buscar o Louco. Tirou-o do interior e pô-lo no armazém (única construção feita de barro, palha e pedra, o resto eram tendas).
Foi o canito que o salvou: mordeu o rabo ao soldado e o Louco teve tempo de se libertar das amarras onde começara a prendê-lo à parede. Perto notou um chicote. Correram a bom correr. Correram tanto que só à noite pararam. Para trás deixaram um rumor de guerra, guerra até ao limite, guerra sem lógica nenhuma. Guerra sem vencedores porque ambos os lados se dizimaram sem ganho algum.
(30.07.09)
(c. 1050 palavras)
Sem comentários:
Enviar um comentário