[A Viagem do Locuo e do Mágico: cont.]
O Mágico não tinha um tostão furado. Não o incomoda, mas a sua barriga discorda da asserção. Decide parar na vila mais próxima, um vilareco de uma dezena de casas, cheia de gente pobre, mais pobre de horizontes e princípios do que a nível material e isso é dizer muito porque parecia terem menos do que pó para comer. Na tasca da vila há tremoços e cerveja. O Mago ergue o sobrolho, obviamente não habituado à magreza do manjar, há tanto que não tinha de se virar só para ter uma míngua tijela rasa de sopa. E isto nem sopa era. Mas lembrava-se dos tempos antigos, do que fazia, saído da infância, e mesmo enquanto criança de oito, nove anos, depois de se ter perdido dos pais ao seguir por curiosidade os saltimbancos - e nunca mais os haver encontrado. Uma criança com um intelecto quase sobrenatural e uma capacidade de se virar no mundo muito além daquela que tinham os adultos mais batidos nos caminhos agrestes da vida. Tinha o dom incomum para a sobrevivência. Era um homem alegre se bem que com os anos essa alegria se fosse alojando mais e mais no interior de si, como uma candeia eternamente acesa no centro da sua alma. Quando era jovem e adolescente ria e saltava por todo o lado, alegre no meio dos desafios porque era aí que se sentia mais vivo. Apesar de à superfície se parecer bastante com o Louco, nunca ninguém nos tempos de juventude se lembrou de o chamar de Tolo. A sua inteligência viva e inquisitiva saltava à vista.
Montou a banquinha no centro da vila, tirou a vara mágica do interior do manto e dispôs três copinhos em cima da banca. Alguns curiosos aproximaram-se e um entre eles, mais temerário, aceitou o desafio.
- Onde está o feijão mágico? Quem o encontrar fica com ele.
Após várias tentativas ninguém acertava, mas o Mago já tinha algumas moedas gastas de cobre que podia usar para matar a fome. Quando tinha o suficiente parou e arrumou a banca. Mas antes deixou que um velhote sem um tusto (permitiu que jogasse três vezes gratuitamente) “descobrisse” o feijão mágico. O Mago afastou-se enquanto o velho correu tropegamente com o seu prémio para muito longe. Quando achou que ninguém o via, plantou-o num monte de lixo. Daí a uns dias teria uma surpresa chocante. Mas deixemo-lo, a ele e ao seu prémio, o primeiro que recebera em toda a sua vida maltrapilha e desesperada.
Na tasca os tremoços souberam-lhe divinamente e a cerveja morna era como hidromel dos deuses. Há tanto tempo que não caminhava assim pela estrada, com absoluta confiança em Deus e nos seus talentos. Era como se vivesse de novo a juventude. A um canto afastado viu um valete, ricamente vestido com algum ouro debruado na roupa. Falava pelos cotovelos ao telemóvel. Falava e falava. Ideias de negócios, tinha-as aos milhares. E partilhava-as alegremente. Era muito jovem, parecia ter quinze anos. Parecia que tinha o telemóvel colado ao ouvido. Falava com patronos e mecenas, na esperança de que um deles financiasse uma das suas ideias que os tornaria a todos multimilionários. O Mago estava impassível à sua mesa, renovando os pires de tremoços e as cervejas mornas que lhe sabiam a ouro líquido, muito atento à conversa do jovem desenvolto. Tinha dinheiro suficiente. O seu lado matreiro veio ao de cima quando decidiu pedir para se sentar à mesa do Valente de Pentaclos e oferecer-lhe uma cerveja. Ofereceu-lhe várias, na verdade. As suficientes para o embriagar e soltar-lhe a língua. Intuíra que aquele rapaz sabia algo importante.
- Psst... anda cá, vou contar-te um segredo...! - disse baixinho e com modos entaramelados.
- Conta... - disse o Mago a rir-se. - Que segredo tão grande poderá um jovem ter?
- O Maaaaior de Tooodos...! - disse abrindo os braços de par em par e quase se estatelando no chão.
- Ah sim? - disso o Mago e bebeu outro gole de cerveja, não querendo parecer muito interessado.
Por fim o Valete de Pentaclos contou-lhe que tinha um mapa que mostrava o caminho exacto para o tesouro que o seu antigo Senhor tinha escondido dos bárbaros das tribos do Norte, aquando das invasões quatro anos antes. Levara muitos criados e matara-os a todos, menos a ele que teve a previdência de fugir e esconder-se. Lembrou-se de pôr em papel o “caminho para o tesouro”. Pouco depois o Rei de Pentaclos foi morto por um opositor e mais ninguém a não ser ele sabia onde o tesouro se encontrava.
O Mago riu muito alto. Pagou as cervejas generosamente e ainda um quarto para ambos passarem a noite. Depois pegou no rapazola, pô-lo ao ombro como uma saca de batatas e subiu as escadas até ao sótão abafado e ao colchão de palha. Despiu o jovem e olhou o corpo nu muito tempo. Era bonito. Acariciou-lhe os ombros e os braços, a seguir as faces rosadas e o cabelo loiro claro. Deu-lhe um beijo casto nos lábios e com pesar decidiu que não havia tempo para prazeres hoje. Localizou o telemóvel e abriu-o. No interior estava o mapa do tesouro, já gasto. Remontou o telemóvel com perícia e partiu, não sem antes olhar com pena para o corpo apetitoso do rapaz.
Procurava o Louco, ele próprio dono de algo valioso sem o saber, mas aquele desvio divertido valeria a pena, não pela fortuna, desprezível quando se tinha outra, a da sabedoria, mas pelo mistério, pela expectativa, pela aventura! Ah, era como se fosse criança uma segunda vez. E que bem isso sabia, todo esse ar fresco a bater-lhe na cara era como ouro, como ouro do mais puro.
7 de Agosto/09
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