TEMPO IMORTAL (ou: Vénus em Escorpião)
Só de pensar nela e nele juntos, na mesma cama, a trocarem confidências murmuradas, a tocarem-se, a sentirem a pele um do outro, Luís sente como se um buraco negro o engolisse. Um buraco no meio do estômago, algo muito fundo, a exsudar desespero, a libertar raios de angústia. Não consegue evitar pensar nos dois juntos. Um ao pé do outro. Porque não está Vera ao pé de mim? Porque não me toca com a mesma paixão e compulsão, com esse leve e suave, gentil, quase desgosto de que podia ser rejeitada pelo outro – mas nunca é? Porque ele e não eu? Supõe, Luís, no meio da sua dor surda, no centro dela como se a habitasse, supõe que o outro é o típico macho alfa. Tem os dentes bonitos e brancos, o tipo. Quando ri tem um riso muito grande, exuberante, e nada falso. Como se ela tivesse dito a coisa mais espirituosa à face da terra, em todo o tempo da terra e desde o começo da evolução humana.
Vera não é espirituosa.
É bonita e alta. Sabe gozar a vida e dar-se com todos. Quando fala com alguém consegue dar a impressão de que naquele momento essa é a pessoa mais importante do mundo. Tudo o que o outro diz é original, significativo, e é importantíssimo que esteja atenta. Pode não haver outra oportunidade para ouvir aquela pessoa extraordinária. E se morre amanhã? Vera é um pouco falsa. E vazia. Mas é a Sua Vera. Que sempre amou com paixão e agora ela devota a paixão dela a outro.
E é menos falsa e mais verdadeira. E é mais genuinamente alegre. E ri-se com gosto. Com verdade. Luís morre a cada segundo que pensa nos dois juntos. Um buraco negro a engoli-lo, a estilhaçar cada átomo da carne. Um desespero que o afoga e lhe ocupa o corpo todo.
Não gosta deste sentimento tão incomum. Nunca foi ciumento. Porquê agora? Odiava a sensação, a maneira escura e suja que o fazia sentir, como se estivesse no meio de um lago turvo e tóxico, preso por algas que o impedem de subir à superfície e respirar. Era isso: o ciúme não o deixava respirar. E no momento em que sentia o ciúme, ele deixava de ser o Luís para se transformar naquela massa horrível de sentimento tenebroso. Ele perdia-se. Afogava-se a si próprio.
Tudo tinha sido muito cortês, o rompimento. Continuavam “amigos”. Amara-a tantos anos que já se tinha esquecido do que isso era. E agora perguntava-se: mas isto é amor ou ressentimento? Por ter sido “trocado” por outro? Isto é orgulho de macho, orgulho ferido? Sentiu-se pior ainda ante esta possibilidade. Sempre se sentiu um ser superior, impossível ele, o Luís, ter sentimentos pequenos e mesquinhos como esses. Não ele! Jamais ele. Era demasiado generoso de coração. O que importava era a felicidade comum, era assim que ele se via: um homem do mundo, civilizado, com sentimentos civilizados. E a partida de Vera em direcção a um belo espécimen humano de grande boca e sorriso bonito, fê-lo ver-se de outro modo. De um modo honesto.
Por instantes odiou-a. Se não fosse a sua partida (num momento da vida conjunta em que já quase nada tinham a dizer um ao outro) ele continuaria perfeito ante os seus próprios olhos e opinião. Agora Luís era obrigado a reformular a opinião de si mesmo.
Luís era um ser humano com falhas tal como os demais. E aquele horrível silêncio negro a ocupar-lhe a alma, sem desculpas, sem permissão, cada vez que deixava os pensamentos voarem para eles os dois, juntos. Doía-lhe tanto saber que, quando os dois estavam juntos, nada mais no mundo inteiro existia. Só os dois. Só os corpos de ambos entrelaçados num instante imortal, e ele, Luís, - deixava de existir. Ele a quem Vera amara um dia – cessava de existir.
Uma dor imensa, pior que o ciúme, submergia-o nessas alturas. Como se a própria tristeza o engolisse. Perguntava-se se deveras a amava ainda – porque achava que não. Mas não entendia esta tristeza cortante que o assombrava de tempos a tempos. Talvez fosse a memória do amor antigo que o viesse relembrar que houve uma época em que ele e Vera estavam tão juntos que o mundo desaparecia. Também eles partilharam, algures, esse tempo imortal.
6.08.09
(c. 740 palavras)
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