domingo, abril 13, 2003

::Almas dos livros::


As pessoas não existem. Existem os livros lidos pelas pessoas que, ao lê-los, passam a existir. Ascendem à condição de viventes, compreende? Logo (siga o meu raciocínio), as bibliotecas são depositários de almas. Ou, se quiser, compiladores de espíritos... na expectativa. Os livros, sendo lidos, passam, também eles, a existir de forma diferente, diversa da anterior. As bibliotecas são depósitos e/ou catalisadores de almas. São elas que enchem o mundo de vida! Percebe!
Gritar, senhora? Eu nunca grito. Nunca.

Interrompeu-me... onde ia eu...? Ah! Seguindo este raciocínio, evidente após exposto, convirá, o mundo sem bibliotecas não existe. De facto, nós os dois, agora, estamos mortos. Não existimos. E sabe porquê? O chão sagrado que pisamos expirou. É morto. Pereceu. A terra sagrada é, por norma, viva. Morre em circunstâncias extraordinárias. Esta que nos suporta, ao contrário, morreu, melhor - foi morta, por circunstâncias ordinárias. Comuns. Banais.

A biblioteca fechou porque o sistema informático está em baixo. Há duas semanas (corrija-me se incorro em erro) ... duas semanas e... e meia, hum? Não havendo sistema informático – não há livros. Os pobres são condenados a um limbo inexistencial. Não podem ser requisitados de outra forma, à maneira antiga. Repare no absurdo, com o sistema informático avariado regressamos à idade da pedra. Felizmente não sou obrigado a recorrer à clava pois tive o bom senso de guardar a minha espingarda. Safou-me de belas alhadas, lá na Guiné...
Reformei-me há cinco meses, melhor dizendo, reformaram-me.

Foi duro. Foi... foi difícil. Nunca cultivei hobbies, não tinha tempo, percebe? Não havia tempo. Eu andava sempre ocupado. O único prazer que tinha (e prevalece) era ler, à noite, antes de me ir deitar. Muitas vezes, incapaz de pegar no sono, levantava-me e retomava o livro. Os livros são caros, sabe? Se fosse obrigado a comprá-los, juro-lhe, teria as insónias mais dispendiosas deste país. Não há a mínima possibilidade de entrar numa livraria e simplesmente lambuzar-me. Empanturrar-me de novelas, romances, poesias, biografias, narrativas históricas. O dinheiro é preciso noutro lado. Nem sequer chega para... já ouviu falar de uma coisa chamada stress pós-traumático? Engraçado... saber o nome das coisas não nos ajuda à sua compreensão... entende? Não nos ajuda... em nada.

Eu... eu... diga-me, quando posso cá voltar? A biblioteca estará de novo operacional... quando?
- A... ama... amanhã.
Eu... volto amanhã então. Às nove?
- Nove e... e meia... é mais.... mais seguro.
Nove e meia, sem falta. No emprego era conhecido pela pontualidade. Nove e meia. Até amanhã.
- Até... até a... amanhã... – respondeu, num murmúrio enquanto o homem saía do edifício e descansava a espingarda debaixo do braço.


Janeiro de ‘02

Sem comentários: