terça-feira, abril 22, 2003


"Uma hora antes de raiar a madrugada do dia 7 de Março de 1974, Kaspar Joachim Utz faleceu, de uma segunda e há muito prevista apoplexia, no seu apartamento da rua Siroká, nº 5, que dava para o Velho Cemitério Judeu em Praga.

Três dias mais tarde, às sete e quarenta e cinco da manhã, o seu amigo, Dr. Václav Orlík, encontrava-se à porta da igreja de São Sigismundo à espera do carro mortuário, apertando na mão sete dos dez cravos cor-de-rosa que pensara poder dar-se ao luxo de comprar à florista. Notou, com satisfação, os primeiros indícios da chegada da Primavera. No jardim em frente, gralhas com pequenos ramos no bico esvoaçavam à volta dos canteiros de tílias e, de quando em quando, uma pequena avalancha desabava do telhado inclinado de um prédio."


In Utz, de Bruce Chatwin.

Que belo começo. Ai que inveja. Estou verde. Quem me dera saber começar assim um livro.
É engraçado notar... a personagem principal está já morta, depois o leitor é movido para o seu amigo Václav e daí para a imagem (invisível antes) de um jardim, da Primavera que desponta.

Somos transportados da morte para a vida, do negro para a cor, em poucas linhas.

Quem me dera um dia saber escrever assim. Li algures que Borges disse um dia: lemos os livros que gostamos e escrevemos os livros que podemos.

Adoro livros pequeninos (como este, pouco mais tem de 100 páginas) que "dizem tudo", que têm "tudo lá dentro", se é que me percebem. Adoro estas pequenas jóias literárias. Jóias preciosas, apesar de pequenas. Quase imperceptíveis.


Sem comentários: