terça-feira, maio 20, 2003
Aqui deixo o segundo capítulo de um livro que nunca cheguei a terminar. É o último.
(P.S. O Dragão fala à çopinha de maçça.)
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- 2 -
O mapa não era lá muito claro, e a zona que o pescador indicara estava um pouco esborratada.
Ou isso ou era a sua miopia a fazer das suas. Tinha orgulho nas lentes de contacto que os amigos, dois anos antes, lhe tinham arranjado. Foram feitas por medida. Embora ele não confiasse lá muito na qualidade dos 'oculiçtaç' daquela ridícula dimensão, a verdade é que as lentes tinham ficado muito bem. Mas, depois de dois anos, devia precisar trocá-las. Só de pensar que tinha de perder outra escama de prata... “Fico depenado em menoç de nada!”
- Engraçado - disse, olhando o mapa - é do outro lado da çidade... maç agora com eçte nevoeiro como é que eu vou açar o caminho?
O dragão já se tinha despedido, lacrimejante, da namorada, a ponte Vasco da Gama que confundira por fémea da sua espécie, e nadava rio Tejo acima.
De repente, apesar da miopia, viu ao longe, em terra, uma figura negra perseguindo outra figura menor, de foice na mão. Ao aproximar-se, escutou:
- Ah pirralho, filho de um cabrão! Anda cá que eu dou-te o arroz! Anda cá, sacana! Devolve-me já isso! Anda cá, ah, vou-te mandar para o lugar mais quente do inferno! Filho da mãe, dá-me isso!
O miúdo andava de roda da Dona Morte, saltitando divertido, rindo-se com a sua falta de jeito e pouca flexibilidade de movimentos.
- Não dou, não dou, não dou! Não tens nada que ser vaidosa com essa idade! Para que é precisas de uma fita de cabelo se nem sequer tens cabelo, hã?! Não dou, não dou, não dou e pronto! Porque é que tinhas de levar a minha cadelinha, hã? Porquê! Ela não te fez mal nenhum! Era tão novinha!
- O raio da cadela já tinha mais de quinze anos! Só não a vim buscar mais cedo por causa da maldita burocracia! Dá-me a fita do cabelo! Dá-ma cá!
- Mentira! Ela ainda nem tinha dez anos! És uma mentirosa! Não gosto de ti! Não tinhas nada de levar a Tareca.
A Morte parou de correr atrás do petiz e repetiu, espantada e sem fôlego:
- Tareca? Isso lá é nome de cão?!
O miúdo aproximou-se dela determinado e deu-lhe uma bruta canelada.
- AUU! Filho da mãe, que se dane a burocracia, tu vais e é já!
- Malvada! - e desatou a correr em volta dela, acenando-lhe com a fita à frente do crânio branco, no sítio onde, supostamente, um dia tinha estado o nariz.
Num ápice, sem que o miúdo desse por isso, a Dona Morte com um movimento ágil, apanhou a camisola dele com a foice e elevou-o no ar. Riu-se e disse:
- Já não me escapas...!
Fez balanço com a foice e lançou o rapaz para o ar e, quando ele vinha a cair, a foice estava à espera para fazer a colheita.
Quando a Dona Morte corta o ar com a foice e olha triunfante para o resultado... vê um enorme dragão prateado a segurar o miúdo numa das... bem... mãos.
- Mas... mas... mas... já não se pode trabalhar nesta terra! É impossível! Que gente mais sem consideração nenhuma!
- Não sou çente, çou um dragão, não me confundaç.
- Vai para o raio que te parta sejas lá quem fores! E devolve-me o pirralho, tenho uma quota a cumprir, senão ao fim do mês não me dão o salário por inteiro e fico a esparguete de tomate para o resto da semana! Já para não falar na reforma, estes filhos da mãe andam a cortar benefícios a cada ano! E ainda tenho de gramar com gajos destes que não me deixam trabalhar! Dá-me o miúdo, pá!
O dragão olhou para o miúdo e depois para a figura de negro e de novo para o miúdo que se agarrou à... bom, mão, e desatou a suplicar:
- Não, não, por favor, ela mata-me! Não me largues!
- Mata-te?
- Mata-me!
- Mata-te?! Maç porquê!
- Eu roubei-lhe esta fita.
- E ela...
- Ceifa-me, corta-me a tola.
- Çó por içço?! Maç que mal educada! Ò çua mal encarada - disse ele -, o miúdo fica comigo!
Podem não acreditar, mas a caveira da dona Morte começou a avermelhar, a avermelhar até sair fumarada pelos orifícios dos olhos e nariz.
- Não podeç andar por aí a ceifar aç peççoaç a torto e a direito! Era o que faltava!
- É o que eu faço, sua gradessísima besta! Devolve-me o pirralho agora senão vais tu também!
Dona Morte, minúscula, avançava directa ao ainda gigantesco dragão.
- Tu? Tu... ah... não... poçço, não! Ah, ah, ah!
Ria-se e o miúdo chocalhava por todos os cantos.
- Ó, deçculpa. Sobe aqui para cima - lançou-o para as costas enquanto tirava com dois dedinhos, delicadamente, a foice da figura vestida de negro e depois lhe dava um piparote, arrastando-a para longe.
- Toma - entregou a foice ao miúdo. - E tu, moçquito, mete-te com alguém do teu tamanho!
- Estúpido! Dá-me a foice! É o meu instrumento de trabalho! - vociferava ao vê-los afastarem-se . - O que é que eu vou dizer ao meu chefe! Vai ser descontado no meu salário! Fazes ideia das contas dos cartões de crédito que eu tenho para pagar, fazes?! E a renda! E a porcaria da universidade privada para a minha filha! Os preços estão pela hora da Morte!
Porém nenhum a ouvia. Subiam o rio.
- Vão ver! Ai vão! Quando as melgas não morrerem e os desatarem a picar, vão sentir a minha falta! Quando as pulgas e as moscas vos tirarem o sangue, vão rezar por mim! Quando os virús e as bactérias que vos fazem doentes não morrerem, vão sentir na pele o quanto sou necessária!
Calou-se.
- E agora, como é que eu vou para casa? Perdi o último autocarro. Sacana do miúdo... ai quando o apanhar...!
O miúdo brincava com a foice ao mesmo tempo que se equilibrava nas costas do dragão.
- Onde é que eu te deixo? - perguntou ele.
- Deixares-me? Não me podes deixar! Ela apanha-me!
- Não apanha que eu dou-lhe um piparote e mando-a para o Barreiro!
O miúdo riu-se.
- Levo-te aoç teuç paiç. Deçpacha-te e diç-me porque eu hoje eçtou muito ocupado!
- Falas de uma maneira engraçada.
- Pençei o meçmo de ti. Moraç onde?
O rapaz calou-se.
- Çe te moçtrar no mapa é capaç de ser maiç fácil.
- Pois. Sim...
O dragão estacionou no meio do rio e virou a enorme carantonha para ele e esticou o mapa nas costas.
- É aqui?
- Hum... não...
- Eçtrela?
- Não...
- Bairro Alto?
- Na-não...
- Graça? Çanto Amaro? Alcântara?
- Estás a apontar para o Rato e para o Campo de Ourique.
- Ah! Eçtas lenteç!
- Vês mal?
- Não! Claro que não! Aç lenteç é que ção defeituoçaç!
- A mim parece-me que não vais conseguir ir a lado nenhum se estás a ver desse jeito.
-Vejo perfeitamente bem!
- Ah sim? Então diz-me: de que cor são as calças do homem que vai a passar ali no Cais de Sodré?
- Vermelhaç! Não, não, eçpera. Azuiç!
- Aquilo nem é um homem.
-Eu çei! Vi logo que era uma mulher!
- É um prédio.
- ...
- Eu guio-te! Pago-te o favor! Deixa-me ajudar-te! Em forma de agradecimento!
- Maç a tua família...
- Não tenhas problemas com isso, eles não se vão preocupar!
- De çerteza?
- De certeza! Então, diz lá, vais para onde e fazer o quê!
- Vou para Çintra aumentar de tamanho!
- ...
O miúdo olhou para o dragão, boquiaberto.
- Ok, perdeste-me. Sintra? Tamanho? Tu és grande! Queres ser maior ainda?!
- Oh, eçtou minúçculo! Minorca! Maiç pequeno que uma pevide!
-Estás a exagerar...
- Não! Çou maiç pequeno que uma miçerável caçca de noz! Que um doç macacoç que habitam no voçço nariz (como é que oç põem lá dentro, a propóçito?)! Maiç mirradinho que o caroço da banana! Çou um infeliz!
- Não chores! Não chores!
- Deçculpa, àç vezeç deixo-me levar pelaç emoçõeç. Eu era maior, maior do que içto que vêç, maç, com o tempo, inexplicavelmente, tenho andado a minguar, a minguar... vou a Çintra, a uma eçpecialiçta! De renome mundial! O que não é lá grande credencial, maç é o melhor que çe arranja neçta dimenção.
- E quem te disse isso?
- Um amigo.
- Confias nele?
- Confio. E também confio na minha habilidade de lhe partir oç oççinhoç todoç çe deçcubro que me pregou uma treta.
O miúdo começou a coçar a cabeça, a olhar para trás, a olhar muito para a foice e depois disse:
- Sabes, vamos confiar na palavra do teu amigo. Por agora. Vamos até à especialista a ver se ela te cura e ver se também me pode ajudar.
- Açudar-te? Tu éç minorca, maç aqui é normal e depoiç ainda cresces maiç um bocadito...
- Não é isso, é outra coisa. É a minha Tareca.
-Tareca?
- A minha cadela - fungou. - Gostava tanto dela...
-Cadela? Nome bizarro para uma cadela... por falar niçço, como te çamas?
- Eu? Bruno. E tu?
- Ah, o meu nome é simples: ÇççXslkjfzWsÇW§.
- ...
- Quereç que repita?
- Posso só tratar-te por dragão?
- Tenho um nome tão bonito e ninguém o uça! Maç eçtá bem... - suspirou - podeç.
- Deixa lá ver o mapa e indica-me de novo o sítio.
- Aqui.
- Isso é Espanha.
- Oh! Vê tu! Sabichão...
Bruno riu-se.
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