quinta-feira, maio 08, 2003

Deixo aqui um capítulo de um livro que comecei a escrever e não cheguei a terminar. Utilizo uma das personagens que já tinha usado no "Lisboa Singular". Façam de conta que é um conto.
______

O Dragão sem Altura




Esta é história do dragão que falava à çopinha de massa. Muitos já devem ter ouvido falar dele de certeza. Ele vive ali na zona de Lisboa, no rio Tejo. Coitado, anda triste. E por causa disso já quase ninguém o vê. Dantes qualquer pessoa que passeasse pela zona ribeirinha o via, abraçado à ponte Vasco de Gama, a trocar carícias e afagos. Eles os dois são namorados... exacto, namorados. Enfim, é uma longa história.
O dragão tinha perdido a altura. Antigamente era enorme, gigantesco! Mas encolheu, encolheu para caraças o desgraçado. Diminuiu tanto de tamanho que começou a ficar com muito medo que a namorada deixasse de gostar dele. Ele olhava para si próprio e lamentava-se:
- Aç minhaç eçcamaç de prata perderam o brilho! A flexibilidade! E nem çequer neçta dimeção horroroça há um hidratante de pele para dragão como deve çer! Em todaç aç outraç há, maç neçta raçca não!
A propósito, o dragão falava à çopinha de maçça. Ele tinha ido parar ao rio Tejo depois da Alquimista ter feito umas misturas nas poções. (Ela metia-se nos copos, mas adiante.)
O pobre do dragão sentia-se muito desgostoso. O que ele quer é aumentar de novo para o tamanho de um T21 com garagem, arrecadação, sauna e piscina interior.
Um dia um pescador que vai a caminho da costa para ajudar na recolha das não sei quantas toneladas de crude largadas por um petroleiro com imenso (toneladas) de prestígio, vê-o, vê-lhe os olhos tristonhos, as orelhas murchas, o rabo dentro da água, inerte, e pergunta-lhe:

- Olha lá, mas tu estás com essas trombas então porquê?! Parece que toda a gente te deve e ninguém te paga!
- Oh... – suspirou o dragão, muito desconsolado, ‘tadinho.
- Fala lá, pá! Estás entre amigos! Aqui nunca ninguém te tentou caçar pois não?
Ele acena negativamente com a cabeça draconiana.
- E olha que davam cá um cacau... se davam – diz o pescador diminuindo os olhos e concentrando-se na criatura deprimida. – Os japoneses, nem te digo. E os chineses... diziam que a carninha devia ser tenra. Bem! Mudando de assunto! Se estás com medo que o petróleo venha cá ter ao rio, não tenhas, a gente com sorte o vento muda e quem leva com ele são os franceses! E também se chegar cá é como se não chegasse! Imitas os portugas, cá a malta da terra, e fazes de conta que não há petróleo nenhum... pronto, assunto arrumado!
- Não é nada diçço....
- Fala lá, catano!
- É a minha namorada...
- Aquela? – aponta para a ponte ao longe.
- Sim...

- Vocês zangaram-se? Olha que outra como aquela não arranjas, rapaz! Quem me dera que a minha mulher fosse assim tão quietinha e caladinha. Ah, calada era um primor! Que raio de problemas é que podes ter com a ponte?
- Não é uma ponte, porra! Ça diççe milhentaç veçes que é uma fémea da minha eçpécie!
- Pronto, pronto, não te zangues que não é preciso... feito, olha que tu também quando queres tens um feitiozinho. Então que foi, ela pôs-te os cornos?
- Oç... oç quê?
- Nada, nada, esquece. Diz de uma vez que eu já estou atrasado lá para a mariscada que os colegas vão fazer na Galiza.
- Eçtou pequeno. Eçtou muito pequeno...
- A minha patroa às vezes queixa-se do mesmo, até me fez ir ao médico para que ele me receitasse uns comprimidos azuis e... mas, pela tua cara e... olhando para a... a cara da tua... patroa, não me cheira que seja isso. Estás pequeno como? Em que sentido?
- Encolhi! Não vêç que não tenho o tamanho que tinha!
- Ahhh! Tens razão, rapaz, pois é verdade, ‘tás a modos que pequeninito... pá, chatice, chatice tramada. Mas olha que não é o tamanho, mas o que se faz com ele! Não é o que se costuma dizer?
O dragão nem respondeu. Deixava-se boiar na água, tristíssimo.
- Hum... pois... o problema é... é... se...
- Çe?
- Não, nada, nada, esquece.
- Diç!
- Se... continuas a diminuir de tamanho até desapareceres...
De repente o dragão empertigou-se e arregalou os olhos. Encostou a caratonha, que mesmo pequena era ainda enorme, à do pescador e clamou, aflito:
- Aças! Aças!
- Quer dizer, não sei! Mas... essa coisa do tamanho, já andas a ter isso há muito tempo?
- Há muito! Eu é que não notava! Ia encolhendo aoç poucaçinhoç... e agora! – berrou – A minha manorada troca-me por outro!
O dragão largou numa choradeira arrebatada. Com as ondulações que provocava quase que fazia o pescador naufragar.
- Acalma-te, porra! Acalma-te! Pára lá! Pára lá com a torneira! – as lágrimas chuviam para cima dele como se estivesse no meio de uma tempestade. – Eu sei de uma maneira para tu voltares ao teu tamanho normal!
- Sabeç?
O choro e as ondulações pararam no mesmo instante.
- Sim... sim, pois sei...
- Diç-me! Diç-me! Olha, dou-te uma eçcama daç minhaç!
O pescador ergueu o sobrolho.

- De prata?
- Claro! Ção todaç de prata!
- Aceito! Passa para cá a escama que eu digo-te!
- Calminha... como é que eu çei que não me vaiç enganar...
- Ó meu rico, meu querido amigo! Há quanto tempo é que a gente se conhece! Alguém vez eu te enganei, hã? Alguma vez te causei algum dano?
- Houve aquela veç em que, por engano, me eçpetaçte com o arpão... – disse ele, com cara de mau.
- Isso foi um terrível mal entendido! Eu estava a apontar para a baleia azul!
- Não há baleiaç açuis no rio.
- Ou era para a de bossa? Isto são tantas qualidades que uma pessoa baralha-se!
- Não há nenhum tipo de baleia neçte rio.
- Seria para o golfinho?
- Çe calhar era para a melga. O arpão era para ter a çerteza que a iaç caçar...
- Ah-ah, este meu amigo, é um gajo às direitas! Muito engraçado! Vamos lá aos negócios.
- Diç-me como é e onde e eu à volta dou-te a eçcama.
- Ah, não! Isso assim não pode ser!
- Não pode...? – disse o dragão encostando-se muito ao rosto do pescador e sorrindo bastante para ele ver como os dentes estavam afiados.

- Tenho ali o mapa, vou já buscá-lo.
Era um mapa das ruas de Lisboa. Do outro lado, bem do outro lado, dissera o pescador, havia uma bruxa que de certeza o ia ajudar. Ela sabia tudo. Era capaz de tudo. O dragão lembrou-se da Alquimista que o havia lançado inadvertidamente para aquela dimensão e duvidou.
- Como aço a bruxa?
- Err... pois... deixa ver se me lembro.
- Não çabes?!
- Claro que sei, sei sim senhor, dá-me tempo para eu me lembrar! – dizia, coçando, frenético o queixo e a testa, suando um pouco. – Ah! – bateu com a mão na testa. – O Frederico! O Frederico é que sabe!
- Quem?
- O Fred! Vais ter com o Fred que ele diz-te tudo, indica-te o caminho e até te dá cama, comida e roupa lavada! É um porreiraço, o Fred, deve-me uns trocados, mas é um tipo às direitas... isso, vai ter com o Fred! Eu até o aviso por telémovel que tu vais lá ter com ele!
O dragão começou a tremer por todos os cantos. O pescador estava paralizado de medo, a pensar no pior, quando de repente a choradeira o cobriu dos pés à cabeça.
- Buáááá! Sniff! Eçtou muito emocionado! A tua açuda comoveu-me até àç barbatanaç interdigitaiç! Até te dava a eçcama já agorinha meçmo, maç... – e aproximou-se, fungando, do pescador – não quero ficar deçcompoçto, quero deçpedir-me da minha namorada bem arranjado, compreendeç, não é?
- Cla-claro! Vai, vai em paz....
- Éç um amigo. Çó não te abraço porque te partia os oççinhso todoç. Mas deçcança que eu volto para agradecer-te!
E mergulhou na água, desaparecendo por completo.
O pescador sentou-se a recuperar o fólego. Depois, de súbito, ergueu-se e foi buscar o telemóvel.
- Está? Olá Fred...





Sem comentários: