quinta-feira, dezembro 22, 2005

Dois Gajos no Conversê

- Planeamos, para certo e determinado ano de 2006, fazer Bungee Jumping - diz o velhadas de papada que tem por hábito usar o nós régio, monárquico ferrenho e vetusto, acredita-se ter presenciado a Revolução Republicana e mesmo a Francesa. Dizem-no antigo aristocrata foragido à guilhotina e tentam apanhar nos és um resquício do sotaque gaulês. Mas as pessoas dizem muita coisa, a maioria sem tino. Ainda ontem ouvi umas trezentas sem juízo nenhum.
- Nós planeamos sacanear o Governo e o Estado em milhões de fundos da Comunidade Europeia - replica o outro, que o imita. É direito como um fuso, magrinho, pele e osso, um velho anoréxico que só bebe chávenas de chá e repudiou para sempre o açúcar. Para justificar a mania à família faz-se de burro, imbecil chapado, mesmo um estafermozinho e diz: faz-me mal aos osses. Os velhos têm esta mania singular de se fingirem estúpidos (e surdos) porque lhes facilita a vida, dá-lhes paz e sossego, não têm de aturar parentes mai-las perguntas idiotas rotineiras - e com a agravante deliciosa de puderem gozar com os novos, pensas que és mais do que eu por seres mais novo, olha que não és!, olha que não és! Um ressentimento duradouro pela juventude - eis a inteira expressão dos velhos. Mas isto sou eu a falar e sou novo, caro leitor a mim contamina-me os osses a parcialidade.
- Meu caro amigo - diz o da papada, - o que me diz da presente situação política?
- Não me meto em bueiros - diz o outro com evidente desprezo. - Para chacinar neurónios inocentes prefiro o método habitual: o visionamento das telenovelas da TVI. Ontem mesmo, repare, descobri quem era o António e que alguém o tinha morto e que naquele mesmo dia esse facínora!
- Facínora!
- ... ia ser descoberto.
- Quantos neurónios foram à vida nisso?
- Não contabilizei (o contabilista meteu férias), mas largos milhões, caro amigo, largos milhões. Passe-me o sal, faça-me o favor.
- Aqui tem.
- Obrigadinho.
O velho magro que nem um cordel fino levanta-se e faz um círculo em redor da mesa com o sal.
- Isso é para quê?
- Novas bizarrices de velho! Há que entontecer sempre a família.
- Olhe que o põem num lar.
- É o meu sonho. Possa eu ser velho e louco e infantil como uma criança à vontade!
- Aterrorizam-me os lares. Estão cheios de velhos! A babarem-se, cheios de mijo e ranho e merda, nojo.
- Olhe que não caminha para novo.
- E as enfermeiras, todas feias e gordas e suburbanas. Nem dá gozo ser velho se as enfermeiras têm cara de estafermo demolhado.
- Como o bacalhau?
- Ora nem mais. Uma bolachinha?
- Agradeço, mas eliminei o açúcar da minha dieta alimentar.
- Mais fica.
Um silêncio confortável instala-se.
- Eu é mais a bola - diz o da papada.
- Bola?
- Para matança de neurónios. Fico a ver aquilo e desce-me o Nirvana.
- Sem meditação?! - exclama o outro, inclinando-se de olhos abertos.
- Exacto.
- Hiii... - e recosta-se, em maravilha.
- A criadita francesa onde se meteu? - pergunta o da papada revirando o pescoço.
- Está a ler Kant.
- Outra vez?! - diz, zangado.
- Deixe-a lá, homem, anda a acabar o doutoramento.
- Nunca mais acaba essa porra...
O velho fino, fino como uma vareta de chapéu-de-chuva, levanta-se, põe-se a executar o passo de ganso e a seguir informa:
- Tenho de ir. Passar revista às tropas.
- Fizeram-no General?
- Ainda não. Está para breve, está para breve.
- Eu ainda sou só Marechal de Campo... - e amua.
- Não se chateie. Tem uma colecção de borboletas inigualável!
- Lá isso...
- Amanhã à mesma hora?
- Vou fazer uma radiografia, não posso.
- Eu agora só posso segunda-feira.
- Combinado.
E despedem-se com um beijo na boca (sem língua). À russa. Hábitos modernos, vá-se lá entender os velhos.

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