O Candidato a Escritor
O candidato a escritor procura o guru que vive no cimo de uma alta montanha. O candidato, rapazote dos seus vinte e sete anos, vai ao topo em busca de conselho.
Como Ser Um Escritor.
O guru já está mais farto destes gajos, só os que não são escritores é que o procuram, os escritores mêmo à séria já sabem aquilo e não vão ter com ele de modo que não tem a companhia de semelhantes, mas de rapazotes de bibe, bebés de fralda e chupeta a dar a dar. Merdinha de vida.
- Como ser um escritor? - pergunta o rapazote e senta-se de pernas cruzadas à frente do velho de túnica encardida e barbas brancas labirínticas a atiçar o fogo.
“Lá vem outro cabrãozinho foder-me o juízo.”
- Simples - diz erguendo-se e andando à volta do lume e do rapazola, certamente gestor de uma merda qualquer, uma Empresa de renome cujo trabalho lhe ocupa dez, doze horas diárias, contando idas e voltas, e escreve “umas coisas” nos “tempos livres” ou, pior, nos “tempos mortos”.
- Pára de olhar para os outros. Começa a olhar para ti. Eu repito, Pára De Olhar Para Os Outros e olha para ti, para dentro de ti, para o interior, mesmo o centro da tua divina chama. A chama desperdiçada por deus ao dar-ta.
- Mas... - diz o rapaz, timidamente.
E depois embarca num longo discurso, com grandes gestos de mãos para acentuar a grandeza do que diz, melhor: para se associar à grandeza dos Antigos e Presentes, que cita. A voz altera-se, tem um vozear de quase homem quando fala nos Grandes Escritores da História, os gestos são de político de bancada. É isso mesmo o que ele é: político de bancada que se confina às palavras alheias e não passa ao acto de construir as suas. E o guru sabe porquê: por sabê-las menores, não merecem estar lado a lado com os Grandes Escritores da História (Antigos e Presentes, Antigos e Presentes). A sua menoridade insultaria a grandiosidade dos outros.
- A única coisa que insulta seja o que for, mas que primeiramente te insulta a ti é a falta de colhões, a falta de coragem - proclama o guru, os punhos atrás das costas, recordando os passos de bailado do último combate de pugilismo a que assistiu pela tv cabo.
- Mas os Grandes, os Grandes! Como escrever depois deles! Como escapar à sua sombra! - objecta o moço, sorrindo com entusiasmo. “Estás mesmo com vontadinha de lhes escapar à sombra, nota-se.”
- Simples: não há sombra. Não há sombra - diz o guru ao baixar-se.
- Não seria melhor esperar - diz o rapaz, confuso e deixando de sorrir - que eu cresça e viva mais? Não terei de Viver e Aprender mais?
- Uma criança pode tornar-se escritor porque já experimentou um leque dilatado de emoções humanas – explica. - Concentra-te nos sentimentos, toca a alma dos leitores como se tocasses um violino, manipula-os, fá-los chorar e rir, odiar e amar, ter pena, compaixão, inveja, ciúme. São barro nas tuas mãos.
- Mas... - começa o rapazote, todavia cala-se e olha as pedras, os gestos grandiloquentes mortos, as mãos, mudas e pálidas, moribundas no colo. São longas e brancas, de tocar piano. Um desses rapazotes que, à beira dos trinta, têm ainda vivas as certezas adolescentes só nas coisas erradas. Apuraram-nas. Têm grandes discussões sobre os Grandes Autores da Actualidade, de Portugal, do Mundo, sentem-se menos do que os Outros, perguntam-se como poderão alguma vez escrever se os Outros já escreveram Tudo? São Medíocres, absolutamente medíocres, Thot, o deus da escrita egípcio, devia erradicá-los da terra cada vez que tentam construir a frase perfeita. O melhor é esperar mais um tempo, viver mais, ser Maduro, aguardar a Inspiração a meio da noite, sim, ou de manhã quando o despertador os acorda a meio de um sonho. Esperar, esperar, sobretudo não escrever nesse interregno de espera. Um Escritor faz-se nas Esperas da Não Escrita, pensam os rapazolas com pretensões literárias. E depois, na pausa sabática que lhes durará a inteira vida, fazem o corte e a costura dos Outros, os Menores, os que se Atreveram a Escrever Apesar de Medíocres! Como podem conspurcar a terra com tais livros? Eu só leio os clássicos, anunciam num trejeito de desprezo e talvez tentem fumar o charuto enquanto o dizem porque há uma aura literata no fumo abençoado do charuto. E com auras, ambientes de certo tipo, tudo passa, tudo passa. Como pode alguém ter a coragem de ser medíocre?!, perguntam-se, atarantados, numa confusão mental de formigas sem antenas, e um pouco ressentidos.
- A mediocridade conduz à excelência, meu estafermo - explica o guru num sorriso de quase ternura, mas o que ele quer é morder-lhe, morder-lhe o pescoço até escorrer sangue e a seguir gritar: Dói? Escreve sobre isso! Ler-lhe-à os pensamentos?, espanta-se o rapazote. Talvez leia, quem sabe.
Do esgoto nasce a flor. É o rancor, a inveja que os leva a criticar? Como te atreves Tu a ter coragem?! Logo Tu, um Irrelevante! A coragem é reservada a corajosos! (Como a água e o ar são reservados aos melhores? Como os direitos são reservados só a alguns?) Não sentimos todos? Não temos todos a necessidade de nos expressar de modo criativo? Se apenas os Melhores pudessem fazê-lo então não haveria nada, não haveria Arte, não existiriam no mundo livros, quadros, esculturas, música, dança, cinema que nos elevassem a alma, nos elevassem a alma até ao Panteão Divino, o sítio escondido que murcha na labuta da vida quotidiana, trabalho-casa-trabalho, escola-casa-escola, escola-casa-trabalho-casa. E devemos essa elevação aos Medíocres! Porque se atreveram, porque se atrevem, porque arrogantemente se atrevem. Uma estátua aos medíocres já.
- Mas... - contrapõe e leva logo um murro nos queixos.
- Queres saber a Verdade, cabrãozinho? - diz o guru num sorriso cínico a mostrar os dentes e a acariciar os nós dos punhos como as meninas acariciam o cabelo das bonecas. - E logo tu a queres conhecer! Como Te Atreves A Querer Saber A Verdade?! - a voz ribomba como a de um deus fodidinho de todo, alguém lhe cortou a vez na bicha ou furou-lhe os pneus. - Não há verdade a não ser a tua! - revela a tremer as bochechas escondidas nas barbas sujas e emaranhadas. - Como é que eu te posso dizer a verdade se só tu a podes descobrir?! Duques, só me saem duques! Idiotas que me questionam sobre maçãs quando só tenho pêras para oferecer! Queres que te facilite a vidinha, é? Que te desvende a verdade quando essa é a tua missão. A tua verdade é a tua verdade, a tua verdade não é a dos outros; a tua escrita, o modo como se desenrola, o modo como se desprende da ponta do lápis, o modo como se evola, é a tua escrita e Não Tem Nada A Ver Com A Escrita Alheia.
(Entretanto dois chapadões na cara do fedelho, fedelho de vinte e sete anos é certo, mas tomemos em atenção que apenas fedelhos colocam tais questões imbecis. Merece os dois chapadões. Para acordar. Para ouvir.)
- Deus só quer a tua verdade, está-se a lixar para a dos outros, ele já a tem, quer a tua, não entendes? A tua verdade pode ser pequena, medíocre, risível, isso não importa. Os medíocres de hoje são os excelentes de amanhã. Vós, rapazolas ignorantes, que tanto admiram os grandes actuais admirariam a sua vulgaridade antiga? - ri-se. - Então não. São magníficos porque persistiram na loucura, na mediocridade, na mediania, na sua escassa excelência. Porque se voltaram e olharam para dentro, para a chama, e tentaram expressá-la, torná-la visível ao exterior, partilhá-la com os demais. E os outros por vezes são como tu: críticos ambulantes. Críticos que exigem hoje a excelência em todas as ocasiões, atribuíssemos nós o poder aos críticos e exigiriam de crianças a impecável escrita de novo “Guerra e Paz”, de outro “O Nome da Rosa”. A bem da mediocridade há que ignorar os outros. A bem da literatura há que ignorá-los de todas as formas possíveis, a cada dia inventar nova forma de não lhes passar cartucho.
- Mas... - e leva um murro no estômago. O jovenzeco dobra-se, agarrado à barriga de dentes cerrados, toca com a testa no chão. O guru (quer ver a Fórmula 1 e despachar isto) segura nas lapelas do casaco e levanta-o.
- Sujei-te o fatinho, foi? Fica de pé, não te sentes.
O guru inicia uma dança à volta dele e da fogueira enquanto diz:
- Segue o teu caminho que fazes caminhando. O teu caminho é feito por ti. A cada passo abres nova brecha da estrada que antes não existia. Tu és o teu caminho, não olhes para os outros, segue-te a ti, a Arte resolve-se a ela própria e sempre no futuro. a Arte nunca se resolve no presente. O teu trabalho é expressares o fogo que tens dentro. Só isso. Sobretudo trabalhar muito e com tremendo entusiasmo porque esse entusiasmo É o fogo.
O guru pára, arregala os olhos e grita:
- Trabalhar bastante e com grande entusiasmo! Segue entusiasticamente a chama que tens dentro. - Acalma-se, baixa a cabeça, tem pouco tempo para estas merdas, a fogueira está quase a apagar-se e ele sem cavacas ali à mão. - Escreve aquilo que te incendeia, segue as personagens que te magnetizam, o que farão elas a seguir?, segue-as com fascínio e admiração. Segue-as de tal modo que ao fim de um mês a escrever desenvolvas uma tendinite. Se não conseguires ficar longe delas e as folhas voarem à tua frente, então, meu menino, tens um livro. E congratulo-te. Permite que o teu entusiasmo te consuma, te conduza, te inflame, essa paixão vai guiar-te para além da mediocridade, para o sucesso, mas sucesso, olarilas, sucesso aos teus olhos. O sucesso que sentes ao pegar no teu livro, feito terminado, revisto, e pensar de olhos luminosos: sim, eu compraria este livro! E é verdade. Fogo. O fogo, a paixão e muito muito trabalho. Trabalho perene, constante, rotineiro. O trabalho está para a escrita como a pressão da terra para o carvão: um conduz à literatura, outro ao diamante.
Dá-lhe um pontapé no rabo, o jovem aceita submisso. Desfere-lhe murraças na cara que apara com os braços erguidos. O nariz incha e o sangue suja o fato.
- Trabalha com este pensamento: que se foda a qualidade. Primeiro serei medíocre! Serei absolutamente medíocre e regozijarei com isso. Trabalha com este pensamento: vou ser verdadeiro, despir-me à frente do público, mas isso não é o que te assusta, pois não? O que vos assusta a todos é despirem-se, ficarem nus à frente de vós mesmos! Terem de lidar com a vossa verdade e os vossos sentimentos! Irás também magoar os outros. É necessário que magoes os outros.
«Lembra-te: dilacera os outros, paspalho! Quê, desejas ser escritor de sucesso, ou mero escritor, Sem solidão?! Não se faz, meu menino, a casa não gasta disso. Ah, queres ser amado... logo vi que eras desses... amado... visita as putas e paga o privilégio. Não serás amado enquanto escritor. Não é isso que importa. Não é esse o fim último. Custa-te estar só e escrever? Também a mim me custa muita coisa, custa-me levantar cedo de manhã e receber carrada atrás de carrada de meninos de bibe como tu, que discutem Política, Cultura, Arte e Cinema como adultos, mas não têm sequer a coragem das crianças, a coragem e a curiosidade que as leva a experimentar coisas inéditas. Inimagináveis. Tens medo dos outros? Ainda?! Há bom remédio: escreve e esconde. Isso é bom. Escreve e mostra, isso também é bom. Não há diferença final entre uma e outra escrita, só diferença de método. Método de agir após a escrita. Não duvides: há por aí muito escritor que não sente necessidade de revelar a sua obra, escreve para si, esconde, retorna a antigos livros feitos, relê-os, gosta, detesta, corrige, não corrige, tem uma arca cheia de livros, eu não duvido da sua existência. Estes escritores existem. O resto, o que vem depois não lhes interessa para nada. Podem até queimar as obras antes da morte e, descendo o caixão à terra, serão cadáveres felizes por apenas eles terem lido esses livros desconhecidos. Ignorados. Invisíveis. Ah, existem sim, mas infelizmente nunca me procuram. São ariscos como gatos no escuro da noite, corremos no seu encalço e deparamo-nos com sombras. Tu, óbvio, não és um deles.
- Mas... a... a Arte Superior... - murmura em vozinha de rato de ombros encolhidos e rosto desviado.
O guru agarra-lhe o cabelo com força e puxa-o, puxa-o. Exclama, furioso:
- Que se coza a arte superior! Puta que a pariu! A arte resolve-se a ela mesma e nunca no presente, já to disse, porra!
Arremete-o contra a parede de rocha e o corpo mole escorrega para o chão.
- Chazinho, chazinho de camomila é do que eu preciso, para os nervos - diz, a bufar pelo nariz.
O rapazinho remete-se à posição fetal. Tem o fato rasgado. O guru fica longos momentos em silêncio, de olhos cerrados. Depois enche os pulmões e repete:
- O que os outros vão pensar, a qualidade, a arte, ficar para a história, ser imortal, não ser medíocre, tudo isso é insignificante. Não tens nada a ver com os outros, escreve para ti primariamente, unicamente, se há leitor a que tens de satisfazer primeiro esse leitor és tu, o teu entusiasmo e gosto vão-se comunicar aos outros. Não podes fingir. Nota-se. Não mintas. Vê-se.
Mas ele vê que há ideias remanescentes naquela cabecinha de amendoim. E os prémios? Então e os prémios.
- Ai, ai... - o guru abana a cabeça. Tem a fúria de um fole esvaziado. - Sucesso é um livro continuar a ser lido daqui a cem anos, não para o nome do autor viver, mas para que os seus sentimentos sejam revividos pelo leitor, como se olhasse para uma foto e as pessoas saíssem do interior. O pior de todos os prémios é o Nobel. É maneira de dizer “Podes parar de escrever”. Dizer isso a um escritor é pedir a um peixe que deixe de usar as guelras para respirar. Os verdadeiros escritores têm pesadelos tenebrosos com o Nobel. Não o querem receber. Agora vai-te lá embora.
- Mas...
- Tu é que explicas a escrita a ti próprio, ninguém o faz por ti. Burro, burro. E com isto as corridas de carros vão a meio.
O candidato a escritor desce atabalhoadamente a encosta. No caminho cruza-se com outro, sorridente, de fato e gravata e com um corte de cabelo assim à foda-se.
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