sexta-feira, junho 09, 2006

CENSURA EM PORTUGAL

No Correio da Manhã de 14 de Abril’06 vi uma coisa Giríssima. “Director da ‘Mais Alentejo’ admite ser preso”.

Cheguei à conclusão que a censura é o maior obstáculo à livre expressão do escritor. Muitas vezes antes de publicar o que quer que seja no blog pergunto a uma amiga advogada se sou passível ou não de ser processada por difamação. Há que ter muito cuidadinho, meus lindos. Julgava eu que a censura em Portugal fora morta e enterrada com o 25 de Abril, mas é mentira. Uma mentira que nos faz a nós, cidadão, acreditar vivermos em democracia. Não vivemos. A censura faz-se por outros meios. Pela porta do cavalo, digamos. A minha amiga diz-me: desde que não especifiques quem é...
Mas eu tenho medo e sou propensa à paranóia e infelizmente não possuo recursos para pagar honorários a advogados e muito menos indemnizações, caso seja considerada culpada de difamação. Eu tenho de me preocupar com isto, percebem?, porque desejo escrever livremente. Pensava eu que o único “sítio” onde podia ser inteiramente livre era na escrita – mas não é. Não há lugar nenhum, físico ou abstracto, em que se seja inteiramente livre.

Eu posso chamar filhos-da-puta ao Governo, por exemplo, desde que não especifique um ministro em concreto. E se o fizer tenho de provar em tribunal, caso me processe, que de facto a mãe trabalhava como prostituta. Se a mãe não trabalhou como meretriz então é difamação.
Outro exemplo. Eu não posso chamar pedófilo a ninguém que não tenha sido condenado por crime de pedofilia.
Desde que não especifique...
Até o próprio “tom” da escrita pode ser considerado ofensivo, sabiam? Tenho de voltar a perguntar isto à minha amiga e aproveitar e confirmar com outra, que também é advogada. Amigos advogados dão jeito. Aconselho-vos a ter um.
Dizer: Senhor Doutor Engenheiro Arquitecto Juiz Magistrado Fiscal-de-Linha Fulano de Tal pode ser considerado ofensivo.
O sarcasmo – ofensivo.

Houve um caso giro na América. Viram o filme “People vs Larry Flynt”? Bom, o gajo teve uma grande vitória jurídica. Conseguiu que a sátira, a paródia, a uma figura pública não fosse considerada como difamação, mas um direito da liberdade de expressão. o tipo pôs um evangélico famoso a ter relações com a mãezinha. Isto nos anos 70. (Confiram este link: http://usinfo.state.gov/journals/itdhr/0297/ijde/goodale.htm )
O direito à sátira.
Imaginam o mesmo por cá? Posso por acaso fazer um determinado e certo cronista, economista, de barbas e católico fundamentalista, ter sexo com a mãezinha com propósitos satíricos? Imaginam isto em Portugal?
Mas porque é que eu não posso? Porquê? Não é justo. Não é certo. É secar-se a tinta – não: é tirarem-me a tinta da caneta quando eu quero escrever.
Podia, por acaso, fazer uma escultura dos dois em actos obscenos? Ou um quadro? Ou uma instalação? Ou um bailado.

Não se pode especificar a pessoa, nem em actos claramente criativos e artísticos. Porque se parte do princípio que o espectador não tem neurónios e vai achar que é verdade. (Ou porque os neurónios já estão demasiado ocupados com Fado, Futebol e Fátima e não têm energia para o resto.) Pior: porque, proibindo, se quer fazer passar a mensagem de que o espectador é intrinsecamente burro e aquilo que vê precisa de ser controlado, limitado. É um mecanismo de controlo do Poder que assim garante que ele, o Poder, jamais será posto em causa através do riso obsceno e satírico que não respeita nada nem ninguém.
Liberdade de expressão em Portugal?
Not really.
Mas vai-se mais longe. A pessoa, mesmo não nomeada, Apenas Iludida, se se reconhecer e sentir ofendida na sua dignidade pode processar à mesma por difamação. E ganhar! O que o seguinte caso ilustra:

“O director da revista Mais Alentejo, António Sancho, corre o risco de se tornar o primeiro jornalista a cumprir pena de prisão efectiva em Portugal, após o 25 de Abril, por um crime de liberdade de imprensa.”
(...)
“Uma peça humorística, inserida na irreverente rubrica "Então vá..." e publicada a 2 de Outubro de 1998, acendeu a polémica. António Sancho escreveu-a sem nunca mencionar nomes, brincou. Maria Gabriela Silva, então delegada do IEFP para o Alentejo, sentiu-se visada e recorreu à justiça. Venceu.”
“"Continuo a defender que se tratou de uma peça jornalística de humor e sátira, de resto incluída numa rubrica onde todos os assuntos abordados são objecto de um tratamento irreverente e humorístico. Não tinha a intenção de atingir alguém", reitera o director da Mais Alentejo (revista criada em 2000, após a extinção do jornal com o mesmo nome).

Em Setembro de 1998, no decorrer de um almoço, Maria Gabriela manifestou publicamente a sua opinião sobre o jornal Mais Alentejo, na sua opinião de mau gosto e pouco sério. No mês seguinte, sob o título A História Secreta da Senhora D. Pureza, António Sancho alegadamente fez várias alusões à delegada, comentando o seu aspecto físico e psicológico, a sua vida. E terminou o artigo referindo a opinião, manifestada dias antes pela ofendida, sobre "um jornal que teimava em incomodar a paz de alma santificada de senhora D. Pureza". Se a liberdade de expressão foi aqui posta em causa?”
(...)
[Fonte: http://dn.sapo.pt/2006/04/12/media/jornalista_incorre_pena_prisao.html]

E vejam isto também:

“O jornalista, que recorreu da sentença – o pagamento de cerca de 15 mil euros a Maria Gabriela Silva ou a pena de prisão – não conseguiu mudar o veredicto, tendo apenas obtido uma prorrogação do prazo, de um ano para dois, para pagar a verba à ofendida.

Como o prazo está em vias de acabar e António Sancho diz não ter possibilidades de proceder ao pagamento, resta-lhe enfrentar a prisão efectiva.”

[Fonte: http://www.jornalistas.online.pt/noticia.asp?id=4545&idselect=87&idCanal=87&p=0]



O que o lixou foi isto: “E terminou o artigo referindo a opinião, manifestada dias antes pela ofendida, sobre ‘um jornal que teimava em incomodar a paz de alma santificada de senhora D. Pureza’.”

Ela reconheceu-se. E não havia nenhuma outra pessoa que também pudesse ter feito o mesmo, expresso a mesma opinião. Ele ter-se-ia safado, penso eu, não fosse pela última ideia. Mesmo assim... é demais.

Conclusão: o homem pode ir parar à prisão por ter escrito uma “peça de ficção, com base em personagens inventadas e [que] não visava em ninguém em concreto.” (in: Correio da Manhã)
Vivem-se tempos curiosos em que discurso e prática são incoerentes e diversos. O nosso mal é por vezes confiarmos em demasia no discurso demagógico e não atentarmos na prática corrente.
Sim: pode ser-se processado por ter escrito um texto de ficção humorística.
E sim, pode-se ir parar à cadeia por causa disso. Tal como no regime do Salazar. (Esse coirão de merda de ditador. Agora, com ele morto, posso dizê-lo. E que algum filho da puta se atreva a processar-me.)
A liberdade de expressão em Portugal é inexistente.

Quando ela é necessária, quando começa a picar “the powers that be” esse mesmo poder escuda-se na lei da difamação que dá para tudo – com a benevolência e o acordo dos tribunais.

E ainda se espantam pelo estado de Portugal... nós nem pudemos falar!

Sem comentários: