segunda-feira, junho 05, 2006

EM RELAÇÃO AO SENHOR BENTLEY


Não sei como hei-de disciplinar, domesticar o senhor Bentley: isto é, colocá-lo numa história com cabeça, tronco e membros, dentro de um género específico em vez do género a que eu costumava (e costumo chamar) o "género esquisito" ou o género bizarro ou “what the fuck” género. Agradeço ao João Seixas, que fez a apresentação do meu livro e do “Ossos do Arco-Íris” do David Soares em Fevereiro, na Bertrand, agradeço-lhe ter dado nome àquilo que eu escrevo: sátira!
Ah-ah! Então é isso! É isso o que eu faço! Sátira! Fiquei tão contente, como se tivesse comprado um casaco novo, super-caro, que me vai durar anos e anos. É tão bom poder Dar Nome às coisas. Acho que só a partir daí é que elas nos passam a pertencer de verdade. Ou a existir para nós, a sair do abstracto e a materializarem-se à nossa frente.
Às vezes o olhar dos outros é importante porque nos explicam facetas sobre nós mesmos que desconhecemos - ou que não sabemos nomear.
Agora já posso dizer a toda a gente, toda lampeira: eu escrevo Sátira!
Normalmente quando acabo de escrever um livro já estou mais do que farta daquele universo, daquelas personagens, não quero nunca mais olhar para aquilo - mas isso não me aconteceu com o senhor Bentley. Eu quero continuar a explorar o universo bizarro do senhor Bentley, que é uma espécie de Portugal em que há algumas coisas bizarras, mas não muitas. Não sei se posso afirmar que é um Portugal alternativo. Não sei se é. Tem é de ser Portugal porque, enfim, é o que eu conheço - e dentro do país têm de ser as zonas que eu conheço - é mais simples escrever sobre o que se sabe.
Entretanto inventei outras personagens e fico a pensar se elas e o senhor Bentley não se podem cruzar dentro do mesmo universo.
Ora eu estar a ter considerações destas, voltar sempre a uma personagem, não era habitual - normalmente queria era avançar para outro livro, criar outras pessoas, esquecer o anterior porque já estava feito.
Às vezes penso: posso fazer do senhor Bentley uma série, mesmo que nunca mais publique nada na vida. Escrever para meu próprio prazer - que é a maneira como se deve escrever. E já várias pessoas me perguntaram: então, quando é que sai o próximo (senhor Bentley)?
Há mais de seis meses terminei outro livro, que está em dois cadernos, por passar a computador, nem sequer o reli. Cada vez que me chateava, o que é que eu fazia?, escrevia sobre o senhor Bentley. As horas passavam num instante. Ele é tão mauzinho. Eu sei o que tenho de fazer em relação a esse livro - cortar a suposta "história principal" e reescrevê-lo com o senhor Bentley como personagem principal. Avancei outras coisas, em relação à história dele, mas não quero divulgar porque pode haver pessoas que não leram o Enraba-Passarinhos.
Estou sempre a voltar a ele - e isso é uma coisa inédita, pelo menos na minha escrita.

O impacto que eu gostaria que este livro tivesse era que a alcunha, Enraba-Passarinhos, entrasse no dicionário. Tanto para definir senhores menos abonados como pessoas com um carácter semelhante ao dele.
Também gostava que, quando abrisse a primeira livraria em Marte, o meu livro fosse um dos que estivesse à venda.
Se calhar estou a querer demais - mas que se lixe. Às vezes é preciso sonhar alto. Os portugueses, parece-me, sonham baixinho.
Gostava também que daqui a cem anos este livro ainda fosse lido. Epá, leitura obrigatória para criancinhas!!!
Ok, não - estava a ser mazinha outra vez.
Mas, tipo, no 12º ano - porque não?
Eu sou um bocado contra as leituras obrigatórias porque matam o entusiasmo, sobretudo se há um teste depois a fazer. Ler o senhor Bentley podia ser obrigatório - mas sem exames. Sem testes, sem "avaliações".
Imortalidade não é uma coisa que eu nem ninguém terá - porque daqui a dez mil anos quem é que se vai lembrar sequer do nosso nome? E 10 mil anos não é nada - 1 milhão de anos não é nada - nem 100 milhões. Há criaturas nesta terra que existem há milhões de anos - e vão continuar a existir depois da nossa extinção. Por isso a preocupação pela "imortalidade" é uma falsa preocupação - porque ela é impossível, não existe. Portanto cem anos, ou mesmo quinhentos (mas isso já é pedir demais), é o que eu desejo, não para mim, mas para o senhor Bentley - que ele continue a ser lido quando eu já for pó debaixo da terra, quando o meu cadáver já tiver sido todo consumido pelos vermes.
Enquanto escritora (vá lá, acho que já posso usar essa palavra) penso que a minha obrigação é escrever em alegria, com alegria, e seguir-me a mim própria. Seguir o meu instinto. E claro tentar melhorar sempre a escrita.

Aquilo que eu fiz neste livro nem é remotamente aproximado com aquilo que eu estou pensar - e já fiz - em outros. O senhor Bentley pode ser pior do que isto, mas muito pior. Mas como ainda não escrevi o que ando a pensar o melhor é não adiantar muito. Eu só gosto de dizer as coisas, ser mais clara - quando o livro já está feito.


O que me agrada muito é quando as pessoas passam pelo livro, deitam um olhar e depois voltam atrás para ver se é mesmo aquele título.
Tipo, um livro com aquele título e uma capa cor-de-rosa choque - a minha cor preferida, a propósito, exactamente aquele tom, nem sei como o Luís adivinhou - duas coisas tão dissonantes, chama a atenção.



Continuo a achar que este é um livro de gajos. Se calhar foi a minha alma masculina que o escreveu. O Luís Corte Real, na apresentação, disse ao João Seixas:
- Esta é a actriz que eu contratei para se fazer passar pela autora.
Penso que a minha imagem choca um pouco com o livro - tipo, foi mesmo Ela que escreveu aquilo?! Não acredito!
Fico toda contente quando oiço isso! Quer dizer que fiz Bem o meu trabalho!
Quer dizer que o meu livro é independente daquilo que eu sou - e que o leitor é confrontado com duas coisas distintas: o autor e a obra. Tem de aceitar que autor e obra são diferentes. Normalmente como leitores nós temos a mania de que estamos a ler quase o diário privado do autor: ah-ah! Apanhei-te! É o que eu chamo do “Síndroma do Espreitador”. Ok, em inglês soa melhor: peeking syndrome. Oh, to peek the private life of someone else! Na génese somos todos uns coscuvilheiros.
Às vezes é difícil ao leitor separar as duas coisas, quem escreveu e o que foi escrito. Acho que esse problema, para o leitor, está menos presente no senhor Bentley.
Não é bom Não corresponder aos estereótipos? Eu acho que sim porque obriga as pessoas a ver além das aparências.
Como dizia, é um livro de gaijos, quem o lê primeiro é sempre o namorado, o marido, o pai. Emprestei o livro a uma senhora lá do meu bairro e vou perguntar-lhe: quem é o quem leu primeiro? A senhora ou o seu marido?
(Perguntei: é ela que o anda a ler, mas ele vai ler depois!)


Aparentemente os livreiros não expõem o “Sr. Bentley, o Enraba-Passarinhos” porque temem que o título choque a “sensibilidade” dos clientes. Que parvoíce. Há esta mania nacional de tratar os outros como doentes terminais, criancinhas de cinco anos ou como gente incapaz de pensar pela sua cabecinha. O que eu vejo é exactamente o contrário: vejo malta que acha graça ao título, se diverte e se ri. Nós, clientes, indivíduos, não somos assim tão frágeis, senhores livreiros. Não somos feitos de cristal. A malta não se parte! Arrisquem um bocadinho, porra. O riso é necessário nesta vida. Porra, cada vez que eu vou meter combustível penso: Olha que giro! Aumentou Outra Vez! E depois assomam-me à mente imagens brutais do Sr. Bentley a sodomizar os cabrões da gasolineiras, dos governantes, enfim, os sacanas que nos lixam >:(


Leiam muito, meus meninos. Que o senhor Bentley vos acompanhe nos sonhos, hehe.

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