sexta-feira, junho 02, 2006

Conto

 
Feito para participar neste desafio do Escreva!
 
"Neste desafio vamos viajar por Portugal na personagem que vos narro mais abaixo.
A vossa missão, caso decidam aceitá-la, será criar um novo capítulo para esta história. Nesse capítulo o nosso personagem passará por um lugar específico de Portugal o qual terão de incluir no episódio / capítulo. O final do vosso episódio / capítulo deverá ficar em aberto dando de qualquer modo a indicação que o personagem continuou a sua viagem."
 
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Camarate

 

 

Um dia decidiu que iria partir. Não tinha pão, mas preferiu ser mendigo no seu país de nascimento. Num cantinho escondido do seu coração levava a esperança de um dia voltar ao lugar de onde partira. E nesse dia seria feliz.

 

 

Andou um bom bocado, é difícil quantificar quanto, estava no estado em que já nem tempo ou espaço têm sentido.

Estreitou os olhos. Aproximou-se para ler a tabuleta.

“Camarate.”

Não devia ter deixado os óculos em casa.

Ah, os pés, quase nem tinha sapatos, mas projectos de sapatos, esboços apenas. Fez de conta que era um carro e contornou a rotunda direitinho. Os condutores apitaram:

- Sai do meio da estrada, ó palhaço!

- O homem não regula!

Regulo.

Meditou.

Se calhar era melhor fazê-los crer que esta peregrinação nasce de um desgosto amoroso.

Decidiu que era demasiado vitoriano. Ultrapassado. Quem é que no seu juízo perfeito vai correr mundo para esquecer um desgosto do coração? Ele ia porque os pés o levavam.

Desceu o passeio, passou pelo edifício dos Bombeiros, passou a estrada e caminhou até ao fundo onde, reparou, existia um cemitério.

Curioso.

À porta estava um homem podre. Podre porque morto, mas a Morte esquecera-se de ir buscar a alma, de modo que o corpo animado apodrecia e ele pacientemente aguardava.

- Boa-tarde – cumprimentou.

- Boas - disse o morto.

- Vende-me os sapatos?

- Os sapatos?

- Os meus, veja, já estão no fio e não me lembro de ter andado assim tanto. O senhor precisa dos seus?

O morto pensou. Compreendeu que podia muito bem esperar descalço pela Morte. Defuntos não precisam de cobrir os pés.

Deu-lhos porque também não tinha necessidade de dinheiro.

Ele teve pena do morto e trocou o seu velho calçado pelo dele, novo e brilhante.

- Então adeus.

- Adeus. E boa viagem.

- Para si também.

Seguiu o nariz. Hum. Franguinho. Que fome.

Ao pé da Igreja, a churrasqueira. No bolso sobrava algum dinheiro. Comprou um frango assado e foi para a praça em frente à Igreja sentar-se no muro a comer. No fim lambeu os beiços e os dedos.

Depois levantou-se para prosseguir viagem. Um périplo sem intenção a não ser a de não ter intenção nenhuma – porque delas, boas e más, está o inferno cheio.

E ele, ao contrário, caminhava sobre a terra.

 

 

 

 

 
 
 
 

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