domingo, junho 04, 2006

O Senhor Bentley das Bandeirolas

O senhor Bentley (que é um asno) viu a criancinha. Um menino gordo, irrequieto, de oito anos com a camisola da Selecção Portuguesa, a dar invisíveis toques na invisível bola.
- Pára lá sossegado - diz a mãe.
- Portugal! Portugal! - diz o miúdo sem parar, pés para um lado, sou o Ronaldo! O Ronaldo!
- Ó, uma criaturinha! - o senhor Bentley avistou-o a partir de cima com o seu olho de águia esfomeada.
Joga-se em voo picado na direcção da criança feliz a jogar à bola com o invisível Ronaldo e o Beckham.
A dois metros estaca, como uma seta oblíqua, a cabeça virada para baixo, a mão segurando o guarda-chuva, parece um míssil, o raio do homem, e - escarra.
Mas não à criancinha.
- Ó mãe! Ó mãe!
- Seu sacana! Seu estupor! - a progenitura agita o punho.
- He, he, he - sorri o senhor Bentley, enquanto retoma devagar a posição vertical e plana para cima. A mãezinha limpa o material biológico da camisola do filho, debulhado em lágrimas.
- Cabrão! Cabrão - grita o puto, olhando o céu.
- Ah, Portugal, Portugal... VamosGanhar!
O Sentido Patriótico inflama-o.
- Onde estão as bandeirolas! Quero prestar saudações às bandeirolas! Ena tanta bandeirola a adornar janelas e varandas, varandins e montras de pas-te-la-ri-as. Portugal Patriótico, sim senhor... sim senhor...
E depois é a razia.
Arrebanha uma que marinhava calmamente ao pé do edredão que a dona pôs cá fora a arejar, e acessorizou a gabardina. Bandeirola à cintura atada como um cinto.
- Hoje cinto-me... very Vivian Wastewood
Esteve vai-não-vai para fazer uma bandelete de outra, menor, esgaçada nas pontas, a coitada devia ter servido para pano do pó, mas o chapéu de coco, todo fornicoques, cheio de nove-horas, não-me-toques-que-eu-hoje-tomei-banho, arrepiou-se (os pelinhos subatómicos levantaram-se como se saudassem a realeza) e o senhor Bentley teve um ataque de comiseração.
- Realmente está sujita... - disse de ar compadecido.
- O que é que este quer, o que é que este quer!
A dona da bandeira, dama gorda de braços flácidos e de permanente recente, esbraceja. Sai por momentos do pé da janela e regressa com a vassoura.
- Vai-te embora, cabrão! Foge daqui!
- Hi, hi, hi - ri ele.
Bandeirolas em riste, o nosso coração está em Deus, Ámen! Carneirinhos, mééé, mééééé! Carneirinhos, a carne tenra (pensa o biltre) a-nes-te-si-a-da por um mês. Portugal e Cascos-de-Rolha de Cima! Portugal e A-Dos-Cunhados! Portugal e o Senhor Roubado! Alto dos Moinhos! Ameixoeira! Catujal! Avenida dos Estados Unidos da América! Quem vai ganhar? Mistério.
- Tanta bandarilha - choraminga o Enraba-Passarinhos - e tanta criancinha nojenta em África sem roupa para vestir (ou tourear, hi, hi, hi). Se há direito. Os pretinhos, por Deus, os pretinhos sem nada para cobrir as partes PUDIBUNDAS.
E suspira. Teatral. Porque é bonito suspirar pelos pretinhos e suas partes PUDIBUNDAS.
Voa pelos céus de guarda-chuva aberto, gabardina desabotoada (está calor), deixando ver o colete. Voa a dançar como o Gene Kelly, mas sem músculo. O Enraba-Passarinhos não tem o poder másculo que Gene Kelly exsuda (então em collants nem se fala).
Nem as coxas.
As coxas do senhor Bentley são minguadas, branquelas, e no entanto dança como um atleta romeno, o gajo.
Vai arrebanhando em fúria, os dentes cerrados e lábios a descobri-los, parecem muralhas incas, os dentes do senhor Bentley, perfeitamente postos uns sobre os outros, bandeiras, bandeirolas, bandolins, bandeiretes, bandarilhas e bandeletes! Enfim, a nossa bandeira das quinas, verde e vermelha, com a esfera armilar ao meio.
Assoa-se a uma (saem macacos, nojo) e escarra na esfera (ao meio). Agora o centro é um escarro verde rodeado por burriés. Uma ilha! O senhor Bentley acha que, ah, assim sim. Assim fica mais bonita! E pendura-a num poste em frente a um hipermercado para toda a gente A-Pre-Ci-Ar a sua obra-prima.
Ele reinventou a bandeira das quinas.
Talvez assim se reinvente a alma portuguesa...
A um vagabundo (perdão: sem-abrigo, sem-abrigo, sem-abrigo), a um vagabundo de merda, não quer é trabalhar, só no bem-bom, deve receber o rendimento mínimo e se calhar vai para o Metro pedir. Deve ter prédios a render em Odivelas!
- Olha-me este porcalhão, com prédios a render em Odivelas e a cagar no meio da rua!
O senhor Bentley teve uma quase pena, um género de pena homeopática (vende-se em ervanárias) e deu ao homem barbudo, velho e malcheiroso outra das bandeirolas para limpar o rabo. O vagabundo encolheu-se. Pensou que lhe ia bater.
- É para limpares o cu! - grita o senhor Bentley a afastar-se, para o cimo, com um molho de bandeiras alojadas no sovaco.
Eram tantas que se pôs a trocá-las pela bandeira azul das praias.
- Ah, melhorou. Temos de ser patrióticos, canudo! Daqui deste mar saímos para encontrar outros mundos! - disse ele a fingir exaltação.
Os veraneantes viam aquilo e diziam-se:
- Mas... meia vermelha e meia verde? Posso ir ao banho ou não, foda-se?!
Ó, que bela ideia!, saltou o senhor Bentley, o gajo era de ideias brilhantes. Ou pelo menos ele pensava que sim. Eu cá não sei.



4 Junho’06

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