Hoje
Cá estou, quente e a chaleira não está ao lume; a salamandra hiberna no meu quarto; quietamente hiberna, mas sem tubagem, não respira; certamente amanhã ou depois (ou após o depois) respirará fumos, dióxidos, oxigénio e, enquanto respira, eu aqueço-me (já que não há liberdade para me aquecer, que o material, o absoluto material me aqueça).
Hoje arrependo-me de ter nascido com útero e de repente eis que surge novel obstáculo: a fala, a voz, as mãos, o pensamento. O pensamento que desenha, o pensamento que escreve, o pensamento relator. O pensamento que ruge e grita. Não se pode falar o pensamento com a boca.
O pensamento é blasfemo; o riso é blasfemo; a pele dos ofendidos é fina e fende, racha, quebra, esmaga-se ante a poeira, desmorona-se o seu inteiro ser à nossa frente; chiu, não ousemos o riso, não ousem o riso blasfemo. Para eliminar o riso há que eliminar a boca, os dentes e quiçá a garganta. Elimine-se a garganta; de enxurrada virá quem nos elimine o resto, o escasso fulgor que sobra.
Não gosto nada que o meu coração bata quando tenho medo (pára de bater); não gosto de conflitos, gritos gritos (pára de bater); não gosto de linhas, mas há linhas e cordas e tendões humanos e dentes e dentes – para nos abater.
Espanta-me o frio.
Espanta-me o frio por dentro e o ódio gélido de fora.
Aqui nos encontramos, camaradas, irmãos, ante o implacável olhar e julgamento do Outro, e o outro acha-nos bárbaros; o outro que nos julga malevolamente por não sermos como o outro; o outro é perfeito, a perfeição do deus-homem condensada em carne em carne em carne.
Amo o calor. Amo o ninho quente. E o quente edredão. E a boca para falar; amo a mão (esta minha mão) que escreve; amo o meu deus que me criou agnóstica e que espera de mim heresias, milhões de heresias, as quais juntará às suas.
É um deus que me abraça e beija enquanto durmo; um deus que me ama porque eu, em inteira liberdade, sou eu – não sou o outro.
Fascinam-me os facínoras, os estafermos. Os grunhos. Os incondicionais grunhos.
Mas fascina-me mais a liberdade.
Posso viver sem grunhos (o que me custaria), mas é impossível viver sem liberdade.
Eu quero somente escrever, não quero lutar; dão-me urticária, as lutas, coço-me, fico vermelha e custa-me respirar; não posso tão-somente escrever? Porque terei de lutar infinitamente pelo direito de viver na minha própria pele? Porque terei de lutar, eu? Não quero. As manhãs são para dormir, não para gastar em guerras; as manhãs fizeram-se para o nada.
Desejo esse absoluto nada das manhãs em que me contemplo e me contemplo a contemplar-me e faço o almoço do gato e contento-me no contentamento.
Não quero guerras, não tenho armas. Também não quero viver com amarras. Ou nós. Ou calada, muda. Quero-me a mim própria inteiramente.
Onde a liberdade? Só por dentro? Não me chega.
Não me chega.
5 Fevereiro’06
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