sexta-feira, fevereiro 24, 2006

O Morto

O Morto


Sou um homem morto, não brinco, morto mortíssimo, e porém caminho porque a morte perdeu-me e aqui na rua me encontro, procurando uma morte ubíqua e esquecida (as múltiplas personalidades fazem isso) da clientela ou material (nem sei em que categoria me insiro), putrefacto, apodrecendo, derramando líquidos pútridos para o chão, a assustar pessoas e animais, que se afastam de mim apertando as narinas ou com um voejar de asas espavorido.

Encontrei um senhor muito velhinho, com um fato castanho coçado, gasto do uso, estimado porque é o único, presumo, que caminha como um compasso aberto sem dobrar os joelhos, formando no espaço vazio das pernas um bizarro, mas geométrico triângulo. Tem o lábio inferior descaído e anda em passos de compasso hesitante, um pé à frente do outro, um pé de cada vez. Agora me lembro que já por alturas do Natal encontrei o mesmo homem-compasso nesta rua do Lumiar. Eu ia de carro, ao lado as compras de última hora para a ceia, e ele movia-se com este fato gasto e os joelhos rígidos e o lábio pendente, no rosto a barba rala e acinzentada por limar.

A que categoria de homens pertence o sujeito? É vagabundo sem casa ou tem abrigo? Adivinho-o só, pateticamente só. Nunca casou. É solteiro. Mal saberá ler, talvez soletrar. E usa chapéu. Não sai de casa sem ele. Mas mais só do que ele poderei eu afirmar-me só porque, morto, apodrento?

Ao encontro da morte devo ir. Para que me leve. Vou implorar: leva-me. (Ou leve-me. Posso tratar a morte por tu ou é má educação? Por tu, defino. Já a Deus ofereço idêntica intimidade. Ao divino, ao desconhecido, ao que está para além do fino véu de aranha que nos separa do oculto, não podem permitir-se ainda maior distanciamento. O tu aproxima-nos, cria empatia onde havia ignorância e vazio. Se não se preencher este vácuo com empatia a ignorância alarga-se, torna-se material e violenta. Sanguínea.) Leva-me seja lá para onde for.

Como um cordeirinho, de trela, eu vou; para o matadouro (mas já estou morto); leva-me, suplico-te, ó morte.

Hoje de manhã acordei assim. Fui não obstante para o emprego. Sentei-me à secretária, pronto para o dia. Entro mais cedo que os colegas, cerca de dez minutos. Quando eles foram chegando juntaram-se e pediram-me que partisse.
- Para onde?
- Para um lugar qualquer. Menos aqui.


Apertavam os narizes com os dedos em forma de tenaz ou tinham lenços à frente da boca e não me fitavam. Só o sub-gerente, o do cabelo oleoso penteado com gel para trás a denunciar as entradas do crânio, de óculos, um poupadinho que traz a lancheira e almoça à secretária, nem sequer fuma, o tipo, tem alma de contabilista, sabe para onde vai e deve ir cada tostão cada clipe; só esse, de mãos nos bolsos, de camisa branca e engravatado e sem casaco – só ele me olhou de frente, foi firme, pôs-me na rua. Um sub-gerente da porra, abaixo de mim na hierarquia, um sub-gerente expulsa-me do meu próprio emprego. Só por estar morto, só porque morri e a morte nem deu por isso.

Pois bem. Adapto-me. Não vem ela à minha procura, vou eu à procura dela.



24 Fev.’06



P.S. Apetecia-me continuar esta história. Não sei se o farei. Matéria a pensar. Tenho tantas outras que me ocupam. Escolher um caminho e nele manter-me, não andar a saltar de carreiro em carreiro.

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