segunda-feira, fevereiro 27, 2006

O Morto 2

 

O Morto -2-

 

 

No Trenó, pastelaria-café do Lumiar, entro, recolho o papel da senhora que está à caixa, dirijo-me em três passos ao balcão e peço.

Uma bica (por favor).

Um croissant com chocolate para consumir ali.

E outro, embrulhado, para levar.

Os empregados, de calças escuras e camisas brancas, olham-me estupefactos, mas atendem-me (o cliente tem sempre razão, não obstante achar-se morto). O garçon escreve o valor em dívida no papelito e lá vou eu sentar-me, distante dos outros fregueses, que lancham (ou lanchavam) com gosto. Noto que acabam de comer à pressa, à bruta, e vão em catadupa enfileirar-se frente à senhora da caixa para pagar. Saem, entupindo a porta meia aberta.

Devia ter pena, mas não tenho; não, meus senhores, compatriotas, conterrâneos, concidadãos – de vós não tenho pena, afinal quem está morto sou eu. Sim, cheiro mal, apodreço em vida, mas possuo ainda vibrante o espírito humano em aflitiva cópula contranatura com esta carne que ameaça deslaçar, romper. Não tenho pena de vós, afinal quem morreu fui eu.

O estabelecimento esvaziou-se e os empregados encarreiram-se do lado de lá do balcão, as mãos nas costas, à espera de clientes, sem coragem de me olharem ou abordarem-me e pedirem que saia.

Sinto o espinho da culpa. Termino rapidamente o croissant e a bica. Têm um sabor estranho, esquisito, quase alienígena.

E saio. Vou a outro café, dentro do centro comercial do Lumiar, em frente à loja de perfumes, porque me descubro ainda com fome, fome esganada, mas um apetite, uma voracidade em banho-maria, a queimar em fogo lento.

Peço um irish coffee e um mil-folhas. Sento-me. Rapidamente as cadeiras dos lados se esvaziam.

Reparo que sou, senão uma celebridade, um caso conhecido. Efémera vedeta, mais efémera ainda (o que estranho porque afinal sou um cadáver ambulante) que o homem doente mental que matou o filho de quatro anos com um tiro de pistola e de seguida a virou para si – mas falhou e está vivo. Esse é a verdadeira, indubitável vedeta; eu sigo, no alinhamento jornalístico, logo depois. Contam-se histórias, entrevistam-se vizinhos, fala-se com a polícia, médicos, o diabo – mas nenhum explica porque matou ele o filho.

Matou-o porque não tomava os medicamentos.

Diz-se tudo sem se dizer o essencial.

Espero que a morte não me tente também deitar areia para os olhos.

 

[E parei por aqui porque não me apeteceu continuar esta história.]  

 

 

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