Fernando Pessoa
A poesia encontra-se em todas as coisas - na terra e no mar, no lago e na margem do rio.
Encontra-se também na cidade
- não o neguemos - é evidente para mim, aqui, enquanto estou sentado, há poesia nesta mesa,
neste papel, neste tinteiro;
há poesia no barulho dos carros nas ruas, em cada movimento diminuto,
comum, ridículo, de um operário, que do outro lado
da rua está pintando a tabuleta de um açougue.
Meu senso íntimo predomina de tal maneira sobre meus cinco sentidos
que vejo coisas nesta vida - acredito-o - de modo diferente de outros homens.
Há para mim - havia - um tesouro de significado numa coisa
tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato.
Há para mim uma plenitude de sugestão
espiritual em uma galinha com seus pintinhos, atravessando a rua, com ar pomposo.
Há para mim um significado
mais profundo do que as lágrimas humanas no aroma do sândalo,
nas velhas latas num monturo, numa caixa de
fósforos caída na sarjeta, em dois papéis sujos que, num dia de ventania,
rolarão e se perseguirão rua abaixo.
É que a poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus,
a tomar plena consciência de sua queda,
atónito diante das coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas,
e lutasse para recordar esse conhecimento,
lembrando-se de que não era assim que as conhecia,
não sob aquelas formas e aquelas condições,
mas de nada mais se recordando.
[Negritos meus.]
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