" - Conhece a ilha de Salamandra, perto da costa da Nova Guiné? (...) Estive lá há coisa de três, quatro anos. Não importa. Os nativos são os mais selvagens que se possa ou não imaginar, e falam um idioma totalmente diferente de qualquer outro falado na face da terra. Alguns anos antes da minha chegada, um missionário foi viver para lá, para levar a palavra de Deus àquela gente bestial. Demorou muitos meses a aprender a língua deles, e, tendo conseguido, pôs-se a traduzir para aquela fala de grunhidos e guinchos a Epístola de São Paulo aos habitantes de Éfeso, em que o apóstolo, como estará lembrado, instiga os pagãos a servir o Senhor, não apenas para agradar aos homens, fingindo, mas como servos de Cristo. Pois esse homem passou anos a traduzir as palavras sagradas para a língua das gentes de Salamandra, trabalhando dia e noite. Mas os caminhos da carne, como não é preciso que eu lhe diga, são fracos, e os que não sentiram as feridas dos cravos e dos espinhos não têm defesas contra os males deste mundo. Um por um, os nativos caíram vítimas de uma doença simples, uma forma atenuada de varíola que o homem de Deus havia contraído antes de sua viagem, e quando cheguei à ilha só havia um punhado de homens e mulheres, fracos e escaveirados, para me receber. Algumas semanas depois, quando o missionário completou o seu tão útil trabalho e a última palavra da Epístola de São Paulo havia sido vertida para aquele dialecto primitivo, o único nativo de Salamandra que ainda restava ficou confinado à sua cabana, da qual só saiu para ser enterrado com seus companheiros que antes dele já haviam ido para aquilo que denominam, na sua cegueira, de «o mar além do mar». O meu bravo missionário completara a sua obra, a tradução da Palavra do apóstolo para uma língua que agora só ele falava (...)."
in Stevenson Sob as Palmeiras, de Alberto Manguel, págs. 27-28
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