Bentley, o Pilinha-Esguia
O senhor Bentley, também conhecido por Pilinha-Esguia, costuma visitar lares com a seguinte desculpa:
- Cof, cof, 'tou velhinho - longa pausa absorta no vazio. - Velhinho... a família, os filhos, disseram: escolha um lar.
Mentiroso.
Visita-os aos magotes, o canalha e, apanhando a ocasião, mal as enfermeiras e auxiliares de enfermagem e médicos viram costas, aproveita a oportunidade para chagar os cornos a algum solitário.
- Ó, a morte! - diz, endireitando-se e recuperando por milagre a voz normal e saudável, tem menos vinte anos no lombo.
- Os bichinhos a comerem, a comerem, morf-morf. Os bichos a mastigarem! - e ri, ri, os olhinhos relampejantes.
A idosa escolhida por alvo, de cabelo ralo branco, arranjado de manhã numa temporária permanente, encolhe-se dentro do roupão e das chinelas e tenta afastar-se no andarilho. O senhor Bentley volteja ao redor da pobre, como um orangotango.
- Ó-ó-ó!Oh! Oh! Oh! Ah-ah-ah!
Parece uma borboleta que sofreu pavorosas mutações genéticas, pelo modo como adeja os braços em movimentos ondulados, mas o dobrar de joelhos revela o macaquear símio.
- Deixe-me...! - sussurra de olhos esgazeados, assustada, caminhando passito a passito.
- Vão-te comer os olhitos, os vermes! Nham-nham! Os bichos! Os vermes! As pulgas! Para que insistes em viver se já podes estar morta?! Não compreendo - ele, o Iluminado - o porquê da obstinação quando tens a MORTE TODA À TUA FRENTE! Sim, pois não queres ser cadáver?! Olha a velhaca... quer ficar para semente - sibila, baixinho, o asno - ... para semente, a velhaca... Não Sabes O Que Perdes! Festarola da boa! e cicia maquiavélico As bactérias primeiro comem-te os intestinos, hi, hi, e os órgãos internos. Comem-te toda por dentro! Ficas feita numa papa...! diz, esgazeado, com o queixo perto do nariz da velha As moscas, bzz-bzz, deixam os ovos na tua carne. Os vermes nascem e começam a morfar, a morfar, a morfar. Crunch-crunch-crunch. Os escaravelhos juntam-se à paródia... e as vespas! E as pulgas... hop, hop. Comem-te toda até ficares sequinha, só pele seca e osso! Festa rija, sim senhora, sim senhora...
Vendo a enfermeira-chefe ao fundo do corredor, hop!, logo salta com o chapéu-de-chuva para cima, cola-se ao tecto como uma salamandra nojenta e esponjosa.
- Um... um homem mau... - debita, débil, a velhota.
- Sim, sim, vá dar uma voltinha. Faz-lhe bem - diz a enfermeira sem parar, condescendente, batendo a mão ao de leve no ombro da vel, perdão, idosa.
- Ali, ali... - aponta com o dedo curvado, debilmente, para cima.
- Vá lá dar a sua voltinha e depois venha lanchar, não se esqueça! - diz, risonha, já no fim do corredor.
O Pilinha-Esguia apanha-os sempre desprevenidos e sozinhos, por vezes nos dias em que as famílias os visitam. No momento em que estão sós, o genro foi à máquina buscar café, a filha está no jardim a apanhar ar ou a ver as instalações, a tia velha está no conversê, de costas, com o auxiliar de enfermagem, e lá desce o senhor Bentley, de guarda-chuva (mas donde diabo é que ele veio?!), sorrisinho matreiro e - com vermes nas mãos. Sim, vermes.
- Este vai comer-te a pele. As bactérias liquidificam-te por dentro. Tens quanto, três, quatro meses de vida? Prepara-te. Vai ser um baile, a tua cova! As moscas correm a depositar ovos na tua carne e as crias alimentam-se dela.
- Á,Á,Á! - grita o pobre de olhos esbugalhados, muito alto, sem forças para se levantar do sofá e fugir. - ÁÁÁÁÁÁÁ! Ááááááááá!
- Mas o que é isto?! - exclama o auxiliar de enfermagem, confuso. - O que é que lhe deu? Sente-se mal?
Bentley, o Enraba-Passarinhos (alcunha que ganhou do tio por ter uma pilinha muito pequena), está ali mesmo ao lado, mas sem sobretudo. Ninguém o reconhece. (Ai se o reconhecessem era porrada na certa. E merecida. Comeu poucas. Mereceu todas. E mais ainda.) Veste um pijama e escondeu o chapéu de coco num saco de plástico do Continente. Amarelecido, enrugadíssimo, arroja as pantufas no chão e sai, devagarinho, porta fora.
- Hi, hi, hi - ri-se, mansamente.
Alça para o céu, allez-hop!, sem ninguém dar pela marosca.
Outro lar de idosos o aguarda!
Um gajo tem de arranjar actividades na reforma, não é?
30 Março'06
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